Um encontro com a história

Quando decidi ir ao Palácio de Queluz, perto de Lisboa, sabia que estava indo para um encontro. Um encontro com o nosso passado, com a nossa história. E poucas vezes um encontro foi tão correspondido como naquela ocasião – isto mesmo, poucas vezes um lugar respondeu tão bem a um sentimento.
De longe, no declive que leva ao palácio, Queluz parece decadente. E é. Algo comum em países que aboliram a monarquia. Mas algo naquele lugar emana vida. E este algo é a certeza de que nossas vidas um dia passaram por lá.
Construído em meados do século 18, o palácio inicialmente foi uma espécie de residência de verão do príncipe consorte. Virou casa da família real portuguesa no final daquele século, após um incêndio ter atingido o Palácio da Ajuda. Dali até 1807, ano em que a corte deixou Portugal e rumou para o Brasil fugindo das tropas de Napoleão, os corredores e cômodos de Queluz protagonizaram o que de mais importante aconteceu politicamente na metrópole – que tinha a distante Terra de Santa Cruz, a esta altura já chamada de Brasil, como uma de suas colônias, a maior e mais importante delas.
Naquele palácio, andaram a rainha dona Maria 1ª, a Louca, e seu filho, o então príncipe regente (e depois rei) dom João 6º, nascido João Maria José Francisco Xavier de Paula Luís António Domingos Rafael de Bragança. Foi ele que decidiu transferir a sede da coroa para a colônia – o que mudou a história de Portugal e do Brasil.
Duzentos anos após a chegada da família real ao Rio de Janeiro, dom João ainda estava lá em Queluz. Num canto da parede, ao fim de um longo corredor que faz curva para a direita, repousa a imagem do soberano, com seu cabelo aparentemente engomado e grisalho e seus olhos aparentemente verdes, suas longas costeletas e seu traje de gala, talvez muita gala para aquele que é considerado covarde por muitos portugueses e esperto por outros. Gala excessiva para uma corte classificada de perdulária pelo jornalista Laurentino Gomes em sua obra “1808”.
Uma imagem “dedicada e apresentada a Sua Magestade (sic) Fidelíssima”, àquela altura “apenas” rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, posteriormente d´Aquém e d´Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia.

Após a curva em que encontro dom João, surge um quarto ricamente ornamentado, num momento em que Queluz lembra Versalhes. O quarto do rei, onde nasceu (em 12 de outubro de 1798) e morreu (em 24 de setembro de 1834) Pedro de Alcântara Francisco António João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon, simplesmente dom Pedro 1º (o 4º de Portugal), imperador aqui, rei lá. Aquele mesmo do “independência ou morte”, o grito que provavelmente nunca foi dito nas margens plácidas do Ipiranga.
No quarto, uma cama relativamente pequena para um homem pequeno (no tamanho mesmo, como eram, via de regra, os soberanos daquela época), a tradicional cortina cobrindo e cercando o leito, decorada com flores, duas espécies de criados nas laterais, uma foto, uma cadeira, tapeçarias e pinturas, um lustre aparentemente de cristal, muito dourado reluzindo a ouro.
Para um rei, um cômodo relativamente pequeno. Pudera. Ali era apenas e tão somente um local de repouso. No Palácio Real de Madrid, por exemplo, os tantos Carlos que lá moraram e mandaram tinham um cômodo para se vestir, um outro para jantar, um outro para orar e finalmente um para dormir – sem contar um para a guarda. Eram os aposentos reais. Em Queluz não devia ser diferente.
O tamanho diminuto (para um palácio, que fica claro) em nada reduz aquele quarto. É um cômodo de respeito, resplandescente, belo mesmo! Um lugar guardado por querubins e figuras mitológicas. Com uma faixa de seguidas flores (aparentemente flor-de-lis, símbolo da nobreza) e estrelas azuis.

À frente daquela cama, que um dia fora um leito de vida e de morte, muitos passavam. Eu parei. Ali, naquele momento, àquela hora, deu-se meu encontro definitivo com a história. Era isso, e somente isso, que eu pensava. Um pensamento que me envolvia, que tornava irrelevante tudo ao redor. Por um instante, um longo instante, senti-me parte daquele enredo. E ali deixei um pouco de mim. Para todo o sempre. Amém.

* A litografia que reproduz dom Pedro 1º morto em seu leito é do século 19 e está atualmente no Museu do Primeiro Reinado, no Rio de Janeiro.

Um passeio em Odenthal

Nosso destino era Odenthal, uma pequena cidade de 15 mil habitantes encravada em verdejantes colinas no estado da Renânia do Norte-Westfália. Nosso anfitrião, Hans. Familiar, não? Eu me deparei com pouquíssimos “Hans” em 20 dias na Alemanha, talvez um, aquele, ainda assim o nome provoca uma identificação direta dos brasileiros com os germânicos.
O endereço, rabiscado numa agenda, devia ser tão isolado ou distante que o GPS recusava-se a indicar o caminho. Resultado: chegamos a Odenthal, até achamos a rua, mas a casa número 6... ali estava ela! Apaixonado pelo Brasil, onde tem uma fazenda, Hans providencialmente deixou no portão branco de sua casa o que poderia ser naquele momento o melhor, mais confortável e íntimo sinal de reconhecimento para os visitantes: uma bandeira verde e amarela.
A casa era curiosa. Nada daquelas construções tipicamente alemãs, em formato triangular, com longas vigas de madeira marcando sua fachada. Era, sim, uma espécie de sobrado, que não parecia um sobrado. Numa cidade nas colinas, numa rua em declive, os três pavimentos da casa tornavam-se quase imperceptíveis do lado de fora. Embaixo, a garagem. Em cima, os cômodos propriamente ditos. Uma construção ampla, com pelo menos quatro quartos. Era a primeira vez que eu ficava numa casa de família durante uma viagem.
Tão logo chegamos, lembrei das histórias sobre a reticência alemã em relação aos brasileiros e a nossa “mania incompreensível” (para eles) de tomar longos banhos. Eram por volta das cinco e meia da tarde e logo comecei a identificar alguns costumes locais, como a do jantar um tanto cedo para os padrões brasileiros. A mesa estava posta, à nossa espera (e eu confesso que fiquei temeroso, pois não aprecio a culinária alemã). Um saboroso e aquecido caldo de cebola, pães, queijo, geléia e tomate (cultivado ali mesmo, no jardim) puseram fim ao meu descabido temor.
Era outono, o clima estava gélido e anoiteceu rapidamente – o que talvez explique o jantar quase vespertino. Meu quarto ficava no pavimento intermediário entre a garagem e o nível superior. O declive do terreno me permitiu uma visão privilegiada: estava exatamente no nível do jardim frontal. A luz da lua, num branco incandescente naquela noite escura, invadia o cômodo com um brilho espetacular. Lá fora, o orvalho, as árvores, as flores. Uma visão mágica.
No dia seguinte, após o café, fomos caminhar. Seguimos o declive da rua, em direção a uma estrada. Passamos por casas igualmente belas, com amplos e coloridos jardins. Descobri que os alemães apreciam a arte da jardinagem. Convivem pacificamente com a natureza. Muito diferente do cenário de muros altos e cercas elétricas que caracterizam as casas brasileiras.

A estrada ficava em meio a uma espécie de floresta, não daquelas densas, como as tropicais, mas com pinheiros altos, copas finas, vegetação rasteira, invernal. Éramos quatro – Hans, o amigo Toco e sua esposa Maria Helena e eu, além de Breno, o cão, que corria à frente do grupo. No caminho, cruzamos com um vizinho. “Moin-moin!”, foi o que me soou aquele “bom dia!”. Quis saber o que a expressão significava, já que havia decorado o tradicional “Guten tag”. Hans explicou que aquele era um “bom dia” na gíria local, do norte da Alemanha.
Viajar é descobrir e aprender...
Na floresta, soubemos por meio de Hans que “kühl”, tradicional sobrenome na minha cidade, significava “fresco”. O clima! Era uma manhã fria e a caminhada exigiu pesadas roupas, o que para um brasileiro era algo um tanto estranho, inusitado até. Mas certamente não foi à toa que uma autoridade local afirmou que Odenthal, “com seus vales e lindos riachos, é um paraíso para caminhadas”.
De volta à casa, fomos para a sacada. Foi a primeira visão mais ampla daquela cidade, que se arrastava pelas encostas tal como queijo ralado jogado sobre um prato qualquer. A comparação parece mesmo esdrúxula, ainda mais diante daquela visão, mas é cabível. É um formato muito diverso das cidades brasileiras. Logo imaginei aquela mesma área coberta de branco, o que certamente se veria meses depois, e isso me deu uma incrível sensação de tranquilidade.
No gradil, várias floreiras exibiam os últimos sinais do outuno. Flores vermelhas, brancas, lilás. Flores que logo estariam secas, mortas. É sempre assim, disse Hans. O ciclo da vida. Na Alemanha, ou ao menos naquela região, contou o anfitrião, é tradição ornamentar as casas tão logo o inverno se vai. Quem plantar as flores primeiro e demonstrar mais esmero no cuidado do jardim “vence” uma disputa silenciosa, porém bonita. Uma saudável disputa entre os vizinhos para exibir o primeiro jardim da temporada.
E ali ficamos, olhando, vivendo, aprendendo. Olhando para uma cidade que está fora dos roteiros – embora esteja ali, ao lado de Colônia, famosa por sua água e por sua catedral. Uma cidade diferente, nas colinas. Uma cidade alemã. Uma casa alemã. Uma família alemã. Dank, Hans!


PS: fica em Odenthal, numa região de floresta, um vale às margens do rio Dhünn, a Catedral de Altenberger (Dom Altenberger em alemão). Um templo cujas raízes remontam a um mosteiro do século 12 e que serve desde 1857 a católicos e luteranos, uma determinação do então imperador da Prússia, que financiou a reconstrução do local após um incêndio.
A igreja – um belo exemplar da arquitetura gótica - está intimamente ligada à história medieval daquela região, mais especificamente aos condes de Berg, que dominaram aquela área durante séculos.

No Pompidou, tout va bien!

Cheguei ao Centro George Pompidou no meio de uma tarde cinzenta. Estava um tanto cansado das aventuras por museus e confesso que naquele momento me atraía muito mais a arquitetura inusitada daquele prédio do que propriamente o que ele guardava em seu interior – que, aliás, eu desconhecia.
Como uma grata surpresa, porém, o Pompidou – assim chamado pelos íntimos – se revelou. A começar da praça (praça?) na qual está inserido. Um espaço aberto, na verdade uma grande rampa de acesso, onde jovens, senhores e senhoras de todos os cantos dançam, cantam, pintam, leem, namoram, caminham, passam as horas, ou melhor, deixam o tempo passar. Existisse ali alguma banda, não seria exagero chamar aquele local de um pequeno e moderno Woodstock.
Naquela tarde, logo na esquina, artistas anônimos ganhavam seus trocados fazendo caricaturas de dezenas, centenas de turistas. Adiante, um casal de jovens, deitado, lia tranquilamente alguma obra de Proust ou Paulo Coelho, quem sabe. Um outro senhor, solitário, pernas esticadas, aparência de Machado de Assis, folheava um grosso volume. Próximo dele, um grupinho entoava alguns cantos. Um outro casal, ela loira, ele ruivo, fazia um pequeno piquenique. E a família unida, pai, mãe, o filho pequeno brincando com seu cubo colorido enquanto o irmão menor dormia sossegadamente no carrinho, simplesmente vivia a vida.

Da arquitetura esquelética do Pompidou, a tal praça exibe alguns grandes tubos de ventilação brancos. Parecem gigantescos ventiladores. A fachada do prédio lembra aquelas estruturas montadas em festas, um monte de ferro encaixado um ao outro, um gigantesco andaime. Uma escada externa, quase pendurada, reforça a sensação de uma estrutura montada. Seu pátio interior lembra a engrenagem de um relógio. O cinza do ambiente serve de pano de fundo para realçar as cores. O azul predomina. Tem branco, verde, vermelho e amarelo também.


O Pompidou é um centro cultural. Tem cinemas, salas de exposições, galerias, museus, cafés, espaços para entretenimento. É um daqueles locais onde uma das obrigações é simplesmente observar o movimento à sua volta. Experimente fazer isso de um dos cafés do mezanino. Será muito divertido. Ou ainda (e também) da escada rolante, aquela mesma que fica pendurada do lado de fora. Olhe a praça, sinta a energia.
O destaque do centro é o museu de arte moderna e contemporânea. Lá estão pinturas de nomes como Miró, Matisse e Kandinsky e exemplares fantásticos daquele tipo de arte que grande parte das pessoas costuma perguntar: “mas isto é arte?”. Bem, a quem tiver olhos para enxergar, a resposta será sim. Um tipo de arte que faz refletir, alegra e diverte. E isto é a essência do Pompidou. Até porque, lá tout va bien, como avisa o grande mural na entrada do museu.



E como parar e observar é uma obrigação - no Pompidou e em Paris -, decido reservar um tempo para isso na saída. Sento em uma grande estrutura de concreto ou pedra, não sei ao certo. Há gente por todo lado. Há vida por todo lado. Um grupo de jovens se aproxima. Alguns deles se sentam. Parecem italianos. Ou seriam franceses? Não, as línguas são bem distintas. Há mais rapazes do que moças. Um deles, sentado próximo, abraça um colega. Entrelaça-o com as pernas. Trocam afagos. É Woodstock. É o Pompidou. É Paris.
Tout va bien!

PS: faltou algo nesta história. Onde estavam, afinal, as veias e artérias do Pompidou, seus famosos tubos coloridos? É só dar a volta no quarteirão...

* Algumas fotos foram tiradas pelo amigo Cristiano Persona, que compartilhou esta aventura.

A primeira noite em Amsterdã

Era noite. Fora um tranquilo voo desde Londres. No aeroporto de Schiphol, a demora do taxiamento do avião provocou-me uma certa irritação. Na alfândega, o policial quis saber para onde eu iria em seguida: “Bruxelas”, respondi. Ele pareceu não compreender. Eu, tampouco. Rindo, um amigo, na fila, decifrou: “ele quer saber o hotel. Mostra o endereço do hotel”.
Amsterdã àquela hora era como uma grande boate. Jovens lotavam o que parecia ser o centro da cidade. Ao menos era o local de efervescência – e como ferve a capital da Holanda, a capital da liberalidade, das moças nas vitrinas e da maconha. Pudera, era noite de sábado – e todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite. No meu caso, o jantar.
O taxista, pele morena e traços árabes, marroquino talvez, nariz egípcio, pontiagudo, pilotava um carro daqueles modernosos e falava ao celular com fone de ouvido. Era um aparelho última geração, daqueles que ainda não tinham chegado ao Brasil. Jovem, contou ter nascido na Holanda, filho de imigrantes (de cuja nacionalidade não me recordo). Ele passava com seu carrão por ruas movimentadas, gente apressada, gente embalada. A cidade estava um pouco escura – ou escuro era o vidro do táxi, tanto faz. Amsterdã combina com escuridão. A falta de luz realça a luz. A pouca luz que brilha nas águas calmas dos canais. A luz vermelha do Red Light District, que indica a mercadoria que ali se oferta. A falta de luz que ajuda a esconder o que Amsterdã faz questão de mostrar.
De repente, o taxista virou à esquerda, entrou numa rua que podia ser chamada de “beco do breu”. Não era exatamente um beco, mas era mais escura do que a habitual escuridão de Amsterdã. O movimento foi cessando. Até que o carro parou diante de uma daquelas inúmeras casinhas estreitas, de três andares, típicas da capital da Holanda. O hotel parecia isso, uma casa. E num certo aspecto era.
Uma rápida subida até o quarto para deixar as malas e dar um tapa na aparência e já estava de novo na rua, agora a pé. Destino: um bar. Objetivos: beber, comer e se divertir (não necessariamente nesta ordem). Afinal, era sábado à noite em Amsterdã, a capital da liberalidade, das moças nas vitrinas e da maconha. Andei um quarteirão e nem sinal do agito. Mais um quarteirão e cheguei no que parecia ser uma avenida. Havia trilhos do bonde. Um quarteirão além e um bar, espécie de pub, surgiu na esquina. Estava lotado e parecia animado, embora não fosse exatamente o que procurava. Uma gente estranha, forte, nórdica, bebia e ria muito.
Caminhei mais um pouco e definitivamente parecia estar muito, muito longe da badalação que tinha visto no caminho até o hotel. A fome apertava, o cansaço batia, era meio tarde, umas dez horas talvez, decidi voltar para a única opção que se apresentou. “Bem-vindo, sou o seu bar”, era o que aquele local de aparência antiga, com vidros que o separavam da rua, parecia dizer. Entrei. Não havia mesas disponíveis. Fui então direto ao balcão - de uma madeira grossa e com algumas poucas ranhuras. Era um bar tipicamente holandês, com um sotaque estranho, incompreensível, meia luz, fumaça de cigarro. Atrás do balcão, um homem louro, alto, 35 anos mais ou menos, e uma loira corpulenta – dois típicos exemplares de Amsterdã.

Na tentativa de parecer simpático, pedi uma cerveja. “Amstel, please”. Para mim, era óbvio: como nada lá lembrava o verde da Heineken, só restava a Amstel. O lemão, eis o que o balconista-proprietário era, um lemão, olhou feio. E respondeu, seco: “Não temos Amstel. Aqui só tomamos esta”. E apresentou-me a Grolsch. “Muito prazer”, pensei. Bela cerveja! Suave sem ser fraca, amarga na medida.
Decidido a tentar romper a péssima impressão deixada por um pedido errado, uma gafe, reparei em dois quadros à minha esquerda. Eram fotos emolduradas. De times de futebol. Camisa vermelha, talvez laranja (a imagem era um tanto antiga), naquela pose típica, seis em pé, cinco agachados. “Ájax”, pensei. Se tem algo em que os holandeses se parecem com os brasileiros é na paixão pelo futebol. Entre as sisudas seleções europeias, eles sempre foram exceção. Possuem um pouco da nossa ginga. Produzem craques. Certamente era o tema ideal para tentar um novo contato. Ainda hesitei, para evitar nova gafe, tentando buscar na memória o nome de algum outro time local. Não, o PSV era de Eindhoven. Convencido, virei-me para o lemão, estufei o peito (para reforçar o ar de conhecedor do assunto) e falei: “É o Ajax?”. Mais um olhar torto. “Não, é o time do bar”. Ah...
Sem mais contatos. Era melhor pensar em algo para comer porque a fome a esta altura emitia sinais cada vez mais fortes. E foi aí que o pesadelo da minha primeira noite em Amsterdã se completou. O tal bar não tinha nada comestível no cardápio além de amendoim e um salgado semelhante a Doritos. Não acreditava que teria que dormir com fome. Não há nada mais irritante do que a fome!
Como me recusei a comer amendoim, sobrou o Doritos. A jovem loira, balconista-esposa do proprietário, abriu uma portinhola, acionou o que pareceu ser um daqueles elevadores de carregar comida e algum tempo depois lá estava a apetitosa porção de... Doritos. Acompanhada de molho de tomate! Acho que nunca comi um salgadinho com tanta volúpia como naquela noite. Confesso que gostei mais do pomarola, que durou pouco. Fui embora com fome.
E assim foi a minha primeira noite em Amsterdã. É, todo mundo espera alguma coisa de um sábado à noite. Eu, ao menos, conheci a Grolsch. E ganhei uma história para contar.

PS: Amsterdã definitivamente não foi dos melhores lugares para comer que visitei. Quem ainda não leu, recomendo o relato sobre os ratos no restaurante. Clique aqui.

"Flanando em Paris"

“Cá estou agora, sentado no Jardin du Luxembourg; meu coração alegre, mas a minha alma se alimenta de inquietude e nostalgia. Vivendo essa experiência na intensidade com que experimento e interrogo cada ondulação ou crispação do meu ser (...).
Entretanto, em Paris, o inverno estrebucha como o dragão vencido por São Jorge. Em cadeiras individuais, em torno de um vasto gramado (a grama queimada) dezenas de parisienses dormitam, leem, respiram fundo o ar puro. Estamos quetando o sol, mas no sentido inverso.

(...) me aposso de tudo o que há em Paris à espera daquele que está disposto a andar e ver. Andar muito, andar horas e horas, e ver tudo, examinar acuradamente... Entre tantas cidades lindíssimas que há na Europa, Paris é sem dúvida a mais bela, por causa dessa mistura bem dosada do antiquíssimo com o antigo, o fin de siècle, a belle époque... São quase dois mil anos de civilização aqui acumulados, coexistindo em harmonia perfeita, a qual não exclui os contrastes abismais.
(...) Meu coração alegre pede uma canção, a canção me estimula a caminhar... Pois debaixo da Pequena Ponte o Sena também corre, remoinha, apressado, pesado, velho e fatigado, e ao mesmo tempo jovem e saltitando nas pedras oblíquas de ambas as margens – o adorável rio Sena, cor de burro-quando-foge!”


* Texto de José Carlos Oliveira, no livro que dá nome a esta postagem, organizado por Jason Tércio, Editora Civilização Brasileira, páginas 170-1.

A cidade onde os carros param

Nós, brasileiros, por mais educados que sejamos, não estamos acostumados à civilidade. É como se este vírus não fizesse parte de nossa sociedade, como se não estivesse em nosso DNA (se é que existe um DNA nacional). O fato é que a limpeza de alguns locais e o respeito presente em outros nos... assustam.
Foi isso o que senti, um misto de susto e surpresa, ao caminhar pelas ruas de Zurique, na Suíça. A cidade em si é uma sucessão de surpresas. A mistura da beleza secular com a energia da modernidade. A babel que faz qualquer diálogo soar como uma canção. A diversidade de tipos num país que parece um gigante adormecido. Propositalmente adormecido. Talvez silencioso.
Silencioso. Este é o trânsito de Zurique. Chega a ser incrível como uma cidade de quase um milhão de pessoas possa emanar tamanho silêncio em suas vias. Nada de buzinas acionadas por motoristas apressados, nada de freadas provocadas por condutores enlouquecidos. A paz e o respeito prevalecem. E como estas definitivamente não são características do trânsito no Brasil, qualquer brasileiro terá em Zurique a mesma sensação estranha que eu tive. Uma sensação de inferioridade (ao menos neste aspecto).
Bastaram poucos dias em Zurique para eu enxergar com a clareza da água límpida de um rio a realidade que me cercava: estava diante de um novo paradigma. Lá, os veículos respeitam os pedestres; cá, via de regra, veículos e pedestres não respeitam nada nem ninguém. Os mesmos poucos dias que bastaram para eu constatar esse novo paradigma não foram suficientes para introjetá-lo. A cada esquina, era inevitável parar antes de atravessar a rua – a regra local é que os pedestres sigam, os carros é que param.

A dificuldade de entender essa nova realidade beirou o absurdo de eu provocar uma confusão numa esquina. Sim, consegui tumultuar o tranquilo trânsito de Zurique ao ficar indeciso entre atravessar a rua ou esperar o carro que se aproximava. Eu, obviamente, parei. Ele parou. Eu olhei para o motorista. Ele me olhou. Eu ameacei ir, mas hesitei. Ele ameaçou ir, eu avancei... Só não fui merecidamente ofendido porque estava na Suíça!
E não foi só. A tal dificuldade de entender o novo paradigma causou uma situação inusitada. Foi perto do Museu do Café, o Johann Jacobs Museum. Estava caminhando com um casal de amigos brasileiros e a diretora do museu quando, ao atravessar a rua, o trio brasileiro parou na calçada enquanto a cidadã suíça seguiu despreocupadamente cruzando a rua e mantendo a conversa conosco. Ao se dar conta de que estávamos parados, ela riu. E nós também, com uma certa vergonha.
E teve ainda o dia em que eu caminhava na Limmatquai, uma avenida nas margens do rio Limmat, e avistei uma bicicleta descendo uma ladeira com uma certa velocidade. Aparentemente, o ciclista não estava preocupado em parar no cruzamento com a avenida. Foi quando eu percebi que ele estava certo. Não precisava parar; os carros é que deviam fazer isso. E fizeram.
E não é só o trânsito que oferece um novo paradigma a nós, brasileiros. O “sistema” também. Chamo de “sistema” todo o pensamento local. Que se expressa, por exemplo, no transporte público. Depois de usar um dos bondes pela primeira vez, causou-me estranheza a ausência de uma figura bastante conhecida no Brasil: o cobrador. Na terceira vez, confesso que até brinquei diante da tentação de usar o sistema de transporte sem pagar – havia nos pontos de parada máquinas para comprar o bilhete que ninguém via ficava. Obviamente, comprei o bilhete.
À curiosidade, porém, não resisti. Perguntei ao suíço que nos recepcionou em Zurique (casado com uma brasileira) sobre a ausência do cobrador. Ele me explicou que o funcionário existe, aparece ocasionalmente nos bondes e pede o bilhete. Quem não o possuir paga uma multa pesada, cujo valor não me recordo. O fato de ser uma espécie de funcionário-surpresa é proposital: isso faz com que todos fiquem atentos sempre. Mais que isso, essa figura invisível é o símbolo de um país onde o paradigma é o da confiança – e não o da desconfiança, como no Brasil. “O país confia no cidadão e, enquanto você não der motivo, seguirá confiando; quando você falhar, porém, pagará caro”. Assim falou o suíço.

PS: algumas dessas histórias já tinham sido contadas na postagem anterior sobre Zurique (leia aqui). Com ela tinha outro foco e já é um tanto antiga, decidi escrever especificamente sobre as questões ora abordadas – inspirado pelo livro “Diários de bicicleta”, do músico David Byrne.

Uma cidade do século 8

Já escrevi neste blog que conhecer um país, uma sociedade, exige ir além – às vezes muito além – das grandes cidades, das capitais. Os Estados Unidos não são Nova York, a França não é Paris, São Paulo não é o Brasil. Neste sentido, posso dizer que conheço bem a Alemanha. Tive a oportunidade de conhecer o país de norte a sul, de leste a oeste. De Singen, na fronteira com a Suíça, a Munique, a capital da Baviera; de Hamburgo, o grande porto no norte, a Bremerhaven, o pequeno porto no norte; de Colônia e Odenthal, na porção ocidental, a Rudolstadt e Gotha, na parte oriental.
Rudolstadt foi parar no roteiro ao acaso. Estava em Munique com um casal de amigos – o pesquisador José Eduardo Heflinger Júnior, o Toco, e a esposa dele, Maria Helena – sem saber exatamente para onde iria. Numa noite, após um dia todo de passeio com a limeirense Jussara e o grego Iannis, que moram em Munique, abrimos um mapa da Alemanha e perguntamos (na verdade o Toco perguntou) onde poderíamos encontrar documentos sobre a emigração local para o Brasil no século 19.
No mapa, Iannis sugeriu a região da Turíngia, que pertencia à antiga Alemanha Oriental. Na manhã seguinte, GPS acionado, partimos rumo ao desconhecido. Encontramos verdadeiras joias. Após passar por Gotha e Weimar (leia aqui), chegamos a Rudolstadt no final da tarde. Sem saber para onde ir na cidade, uma olhada ao alto indicou um castelo. É onde funcionava o arquivo estatal, segundo apuramos.
O local estava aparentemente deserto, o que conferia-lhe uma certa melancolia. Sensação acentuada pelo clima um tanto gélido e sombrio daquele fim de tarde de outubro. O Schloss Heidecksburg é uma espécie de museu a céu aberto. Seu pátio de pedras desiguais parece ter esquecido seu provável passado de glória – realçado pelo amarelo predominante em suas paredes, com toques de branco, e o contraste com o negro do telhado.

Rudolstadt tinha apenas dois hotéis quando lá estivemos, segundo a escritora Helen, que tal como um anjo surgiu no topo do castelo para nos guiar pela recém-descoberta cidade. Optamos pelo segundo, o Adler Hotel, um prédio de 1612 que numa noite – provavelmente em 1781 - já serviu de hospedagem a Goethe (é o que indicava a placa na sua fachada).
O hotel fica na Marktstrasse, a praça central, na direção oposta à prefeitura (a famosa Rathaus) – que exibe uma torre ao lado de uma espécie de varanda bem ao estilo medieval, cestavada e ornamentada. Uma praça que parecia pertencer a uma cidade fantasma (com um certo exagero, afinal havia a nossa presença e a de alguns outros por ali).
Cada detalhe de cada uma daquelas fachadas ao redor da praça exibia e escondia um charme peculiar. Assim, paradoxal. O que as paredes revelavam, séculos de história, elas mesmas pareciam esconder, histórias.

Rudolstadt à noite ficou ainda mais vazia. Andamos a esmo por suas ruas, às vezes um tanto escuras, e becos. À procura de um lugar para jantar, à procura de conhecer o lugar. Andamos de modo errante. Por ruas que pareciam esconder uma névoa. Até que avistamos uma espécie de trailer. Mais um dos inúmeros locais de comida turca espalhados por toda a Alemanha. Döner kebab (o famoso lanche grego, como ficou conhecido no Brasil), este era o pedido favorito. Lá dentro, um ou dois clientes, além dos dois “chefs”.
Após uma refeição rápida e barata, continuamos nossa caminhada. Àquela hora, Rudostadt lembrava a cidade que deve ter sido quando surgiu em meados do século 8. Além das pessoas no trailer-lanchonete e uma ou outra alma que vagava pela rua, só fomos encontrar vestígios de gente numa construção aparentemente isolada, perto de um rio. Um prédio antigo, com um cartaz que parecia o de um filme antigo. Um cinema. Lotado. E nós, intrusos, entrando sem pedir licença. Uma sala escura, obviamente com um telão, numa cena que mais parecia um daqueles filmes italianos. Uma certa emoção tomou conta de mim.
E a noite caiu. Voltamos ao hotel. Na manhã seguinte, logo cedo, pegamos a estrada. Desta vez com destino certo: Hamburgo. Uma longa viagem. Mas esta é uma outra história.

* A imagem do hotel é do site de divulgação.

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