Uma "gran vía" centenária (ou a via das putas)

Uma das principais artérias de Madrid completou 100 anos em 2010. A Gran Vía ficou no meu imaginário turístico como a “via das putas”. Assim mesmo, na forma consagrada por Gabriel García Márquez, minha forma preferida desde que li, no original em espanhol, “Memoria de mis putas tristes”, um dos clássicos do escritor colombiano, lançado em 2004.
Não foi o livro, porém, que imortalizou aquela grande avenida. Os escritos de García Márquez, aliás, não chegam nem perto de Madrid. A referência às putas tem mais a ver com a minha primeira impressão do que propriamente com qualquer resquício literário ou histórico.
Cheguei à Gran Via pela primeira vez após subir uma rua larga, espécie de calçadão, que havia sido recomendada por uma conhecida. A dica era: “vá até aquela rua cheia de sex shops por todo lado”. Confesso que não fui parar lá atraído pelo mercado do sexo; sequer sabia onde estava até constatar que, à direita e à esquerda, predominavam vitrinas ousadas, eróticas, convidativas. “É aqui a rua que ela me falou!”, pensei de imediato.
Ao chegar à esquina no cruzamento com a grande avenida madrilenha, a placa sobre a escadaria da estação do metrô – com aquele tradicional losango com borda vermelha e um quadrado azul que indica o eficiente sistema de transporte subterrâneo da capital espanhola - ajudou a me localizar: “Gran Vía”.


Foi uma passagem rápida, tempo suficiente para cruzar aquela rua de acesso apressadamente, sem muita atenção (até demorei para notar os tantos sex shops). Já na grande avenida, cuja construção foi iniciada em 4 de abril de 1910 pelo rei Alfonso 13, nada chamou minha atenção e a deixei rapidamente. Não houve, digamos, atração e menos ainda correspondência. O que, convenhamos, é quase uma blasfêmia considerando se tratar de uma das principais vias madrilenhas, famosa em todo o mundo.
E que charme fica a descrição de sua história em espanhol: “La Gran Vía ha sido y es el escenario de los estrenos de cine, de las fiestas elegantes, de la gente chic y la cara más cosmopolita de la ciudad, por donde se han paseado las estrellas de Hollywood y los toreros: Ava Gardner, Manolete y Orson Welles. El escritor americano Ernest Hemingway dijo que era una mezcla ente Broadway y la Quinta Avenida. Otros han preferido compararla a los bulevares de Haussmann en París. Pero la Gran Vía es única e inconfundible, y su historia narra el encuentro de la sociedad española con la vida moderna: los primeros almacenes comerciales, el primer edificio con aire acondicionado, la primera línea de metro, las primeras cafeterías americanas o los primeros establecimientos de comida rápida”.
Dita assim, como consta no site oficial que comemora o seu centenário, a Gran Vía soa imprescindível e inesquecível. No site, aliás, é possível saber um pouco da história dessa grande avenida, ver a evolução com o passar das décadas de sua arquitetura rebuscada em diversos estilos, conhecer os locais para compras e lazer, fazer um passeio virtual. Lá estão, física e virtualmente, o Palacio de la Prensa, o Casino Militar, as Oficinas de Vicente Patuel, o Edificio Metrópolis, o Hotel Atlântico, entre outros prédios de inestimável valor histórico, artístico e arquitetônico.
E lá estão também as putas. Assim foi numa segunda passada pela mesma rua de acesso à Gran Vía. Acompanhado de um casal de amigos, notei olhares estranhos em nossa direção. Minha amiga seguia dois passos à frente. E surgiram alguns tímidos sinais, nem tão discretos a ponto de não os vermos, nem tão abusados a ponto de alguém mais notar. O fato é que havia belas mulheres espalhadas (eram tantas...) pela rua, em frente a lojas e bares, bem vestidas, provocativas. Logo concluí – o que foi confirmado pelo meu amigo com uma breve mexida na cabeça: sim, eram putas. À luz do dia.
“La Gran Vía es el lugar donde tradición y vanguardia se entrelazan, reflejo de una gran ciudad que sigue sorprendiendo a todos aquellos que la visitan.Convertida en el pulmón por donde respira el centro de la capital, la Gran Vía sigue teniendo el aire cosmopolita que la hizo célebre desde su nacimiento. Espejo de la capital, en ella se percibe el rápido pulso de un Madrid intercultural y en constante crecimiento (...)”.
Ainda fui uma vez mais à Gran Vía, numa outra visita a Madrid. Desta vez, os olhares foram mais atentos, mas as putas de outrora já não estavam lá. Ao menos não tão à vista. Melhor assim. Pude olhar com mais atenção para a arquitetura e sentir mais calmamente a pulsação daquela grande avenida, construída para ligar os bairros de Salamanca e Chamberí.
Uma “gran vía” que, se está longe de ter o valor econômico e o glamour da Champs Élysées de Paris ou da Quinta Avenida de Nova York, assistiu a todas as grandes transformações pelas quais a sociedade espanhola passou nos últimos cem anos. E isto não é pouco para uma avenida.



* As três fotos estilizadas acima foram retiradas do site oficial do centenário da Gran Vía; a outra (em que eu não apareço) é do UOL (autoria de Gustavo Cuevas/EFE)

"Pick-up": uma aventura em Washington

Tínhamos chegado a Washington D.C. há poucas horas e já estávamos no National Mall, a longa via que concentra as estruturas do poder nos Estados Unidos. De um lado o Capitólio, a sede do Congresso; de outro o Lincoln Memorial, uma homenagem ao ex-presidente Abraham Lincoln, republicano que governou entre 1861 e 1865. No meio, a Casa Branca.
Decidimos ir até lá caminhando (estava com dois amigos). Foi uma jornada relativamente longa - não há forma melhor de conhecer um lugar do que caminhar despreocupadamente por suas ruas. Só não havíamos previsto a possibilidade de uma mudança no tempo. E no final da tarde, o céu na capital dos Estados Unidos, no Distrito de Colúmbia, foi ficando escuro e cinzento. Até que pequenas gotas de água começaram a despencar.
Num primeiro momento, optamos por enfrentar o que ainda era um chuvisco. Mas a intensidade das gotas foi aumentando e, numa revisão de cálculos (que considerou a possibilidade de um temporal e a distância que deveríamos percorrer a pé), mudamos os planos. Era hora de pegar um táxi. Paramos num cruzamento numa área verde próxima à Casa Branca e começamos a dar sinal. Passou um, passou outro e ninguém se dispôs a pegar aqueles três turistas.
Até que uma alma bondosa, num carrão verde escuro - tipo Mercedes, Jaguar ou (o que é mais próximo da verdade) um Dodge - parou. Entramos. Como havia se tornado hábito, meu amigo foi no banco da frente e a outra amiga e eu sentamos atrás. O motorista tinha uma feição árabe, como também é praxe por aqueles lados.
Enquanto meu amigo informava o nome do hotel, nosso destino, risos soltos se espalhavam pelo carro, fruto das lembranças das histórias da viagem. Sem pestanejar, começamos a fotografar – tudo era motivo para fotos e aquele carrão verde, com estofado verde e maçanetas cercadas por uma madeira estilosa, não poderia ficar sem registro. Tudo isso enquanto o táxi avançava um quarteirão, até o semáforo.
Quando o sinal ficou verde, o nosso taxista cruzou com um colega, também num carrão, que vinha em sentido oposto. Pararam e trocaram rápidas palavras. Em ÁRABE (e este é um detalhe crucial para esta história).
Dali por diante, o que se viu foi uma daquelas situações inusitadas, essenciais em qualquer viagem. O taxista que nos levava, ou que pelo menos pretendíamos que nos salvasse daquele fim de tarde chuvoso em Washington, virou-se e começou a dizer: “pick-up”, “pick-up”, “pick-up”. Assim mesmo, repetidamente. Trocamos olhares desentendidos. Arriscamos algumas traduções, com as versões mais diversas. Nem a nossa amiga, professora de inglês, captou o significado daquelas simples palavras que o taxista insistia em pronunciar. “Pick-up”, “pick-up”, “pick-up!”
A tentativa até então frustrada de comunicação se resolveu quando meu amigo disparou: “Ele está dizendo para sairmos do carro que o outro taxista, amigo dele, vai nos levar”. Saímos. O táxi-carrão verde então se foi. E o colega dele do outro lado da rua também. Definitivamente, não tínhamos entendido nada. Nem sequer a situação que acabávamos de vivenciar. Afinal, como o meu amigo pôde entender o que o taxista falou com o colega se eles conversaram em... ÁRABE?
Foi justamente o que, num repente de luz, eu perguntei. Só então demos conta da nossa burrice triplamente qualificada.
Sem táxi, na chuva, o jeito era rir e seguir tentando. E eis que uma outra alma bondosa, um taxista com aparência meio árabe, meio marroquina, ofereceu-se para o serviço. Durante o relativamente curto trajeto até o hotel, descobrimos que o motorista era do Egito e que estava há anos em Washington. Soubemos também que, via de regra, os taxistas não apreciam fazer trajetos curtos (leia-se por meros dez dólares) na capital dos Estados Unidos – onde, prevê-se, poderosos gastam dinheiro gordo com táxi.
O taxista egípcio explicou que é comum um motorista, durante uma mesma viagem, pegar mais de um passageiro a fim de aumentar os lucros do trajeto. Foi o que havia acontecido na nossa chegada à cidade, quando um jovem canadense dividiu conosco o táxi no caminho da rodoviária ao hotel.
O simpático - e àquela altura caridoso - egípcio nos deixou no nosso destino e se foi. Escapamos da chuva, que não chegou a apertar. Economizamos um pouco de tempo e gastamos alguns dólares. Descansamos as pernas e alimentamos a alma com as risadas que se sucederam ao episódio. E o mais importante: ganhamos uma história para contar por toda a vida (da qual o único registro é uma foto desfocada dentro daquele táxi-carrão verde).


PS: até hoje não descobri o que aquele “pick-up” (ao menos foi o que entendemos) significou. No dicionário, as opções são “pegar, apanhar, captar, adquirir, selecionar, conseguir, catar, arranjar, separar com os dedos, escolher cuidadosamente...”.

* A amiga na foto é a jornalista Kelly Camargo; o outro amigo da história é o publicitário Cristiano Persona.

Uma ponte rumo ao "sweet" Brooklyn

São 1.834 metros que um dia separaram o céu do inferno. Num único dia em 127 anos de história. No fatídico 11 de Setembro de 2001. Naquela manhã, milhares de pessoas tiveram que cruzar a histórica ponte pênsil que liga a ilha de Manhattan a uma das regiões mais charmosas de Nova York, o Brooklyn. Corriam assustadas fugindo de um dos episódios mais selvagens da história contemporânea.A “New York and Brooklyn Bridge”, ou simplesmente Brooklyn Bridge, começou a ser construída em 1869 e foi aberta 14 anos depois, no dia 24 de maio. Em estilo gótico, era a maior ponte suspensa do mundo – e o ponto mais alto de uma Nova York ainda sem os arranha-céus.Com um currículo desses, a Ponte do Brooklyn só podia ter surgido para fazer história. Ela de imediato se tornou ponto de referência na cidade que “nascera” apenas um ano antes do início de sua construção. Sim, a Nova York que conhecemos hoje é fruto da união de seus cinco “boroughs”, ou bairros, que eram cidades independentes – Manhattan, Brooklyn, Queens, Staten Island e The Bronx.Não demorou muito – e não foi preciso muito esforço – para que a nova ponte virasse também referência para os turistas. Todos os anos, milhões de pessoas cruzam a passagem sobre o rio East, a pé ou de bicicleta (há faixas específicas para pedestres e ciclistas). Os carros passam por uma via num pavimento inferior.Na primeira vez que fui a Nova York, um misto de falta de informação e “cansaço turístico” (sim, isto incrivelmente existe!) me fez ver a ponte do Brooklyn apenas à distância, a partir do Píer 17. Na segunda vez, porém, ela me atraiu como ímã. Mal havia descido do avião e já estava caminhando em direção ao City Hall, a prefeitura da cidade, ponto de partida para quem pretende cruzar a famosa ponte. Foi uma caminhada longa e prazerosa, acentuada pelo sol tímido que aparecia por entre as nuvens.

No início da jornada na ponte, no trecho ainda pavimentado, vi à esquerda a também bela – embora menos famosa – e azulada Manhattan Bridge demarcando a região de prédios quase monocromáticos em tom laranja, o Dumbo (sigla para Down Under Manhattan Bridge Overpass, justamente Abaixo da Ponte Manhattan).
Olhar em volta, aliás, é a principal atração para quem se dispõe a caminhar pela Ponte do Brooklyn. À direita, no horizonte, já no caminho de madeira cercado de grades ornamentadas em estilo clássico, repare numa pequenina estrutura. Olhe bem nos contornos e verá uma senhora, mão direita ao alto carregando uma tocha.
Impossível não reparar também no cenário que começa a ficar para trás. Ver Manhattan assim, de longe, dá a noção exata da “selva de concreto” cantada por Jay-Z. E é também um belo contraste com o “doce” Brooklyn que vai se aproximando. Calmamente. Porque a ponte merece ser percorrida vagarosamente.
Com olhos de viajante, você corre um grande risco de se encantar com os grossos cabos de aço que partem das grades laterais rumo à estrutura gótica central, que traz marcado no topo um enigmático “1875”, sinal evidente de sua bem vivida velhice. Logo acima, ventila imponente e solitária a flâmula de listras vermelhas e brancas, com suas estrelas no fundo azul, símbolo do poder.
Simétrica e paralelamente, os cabos se estendem numa perfeita harmonia, tal como harpas gigantes, entoando uma música silenciosa, captada apenas por ouvidos atentos (e dispostos).
Caminhando a partir de suas românticas e charmosas luminárias, você se sentirá cada vez mais envolvido por aquela grande teia até que não mais verá o mundo senão através dela. E assim os prédios de Manhattan ficam ainda mais atraentes, como se envolvidos por uma aura metalizada – e às vezes um pouco enferrujada.



Da metade do caminho em diante, a partir da grande estrutura gótica (que vai se distanciando às suas costas), o cenário na ponte se repete como num espelho. Há, porém, uma diferença substancial: a vizinhança que se aproxima agora é o tranquilo Brooklyn. “How sweet it is!”, anuncia a placa, a mesma que deseja boas-vindas.


PS: o caminho de volta foi feito pelos subterrâneos do metrô.

Palácios e castelos - parte 1

Para quem gosta de história, ir à Europa é como um encontro – às vezes um reencontro. Foi movido por este espírito que pisei no Velho Continente pela primeira vez em 2005. Chegava para um compromisso marcado com o passado. Contava os minutos para encontrar um castelo ou palácio. E eles surgiram em Munique. A capital da Baviera (ou Bavária) soube unir como poucas o antigo e o novo. Integrou de forma harmoniosa passado e futuro, conservação e desenvolvimento. É assim que o Residenz, um palácio cujas raízes remontam ao século 14, sobreviveu encravado em pleno centro da cidade.
O Residenz da atualidade é resultado de uma série de acréscimos feitos ao longo dos séculos por duques, príncipes eleitores e reis da Baviera (esta é a minha forma preferida). Sua origem está no Neuveste, castelo erguido em 1385 no que era então o canto nordeste de Munique. Uma história que vai do duque Stephan 3º (1375-92) ao rei Ludwig 3º (1913-18).

O palácio é imponente e belo visto tanto da Odeonsplatz, na fachada que fica para a rua que leva seu nome, a Residenzstrasse, como de seus jardins, o Hofgarten, na fachada lateral. Para a rua, fica a chamada Residência de Maximiliano; para o jardim, a Ala do Salão de Festas. Nos jardins, pela primeira vez eu vi a famosa simetria verde, pontuada por pequenas flores coloridas. Um jardim em perfeita ordem, com uma espécie de coreto ao centro.
Dentro, tesouros dos nobres da Baviera se juntam a pinturas em quadros e paredes, além dos móveis, todos esnobando brilho, riqueza e poder. Um brilho dourado escondido por grossas - e opacas do lado de fora – paredes. Olhando do exterior, aliás, aquele prédio e sua imponência até poderiam passar como sede de um organismo burocrático qualquer.



Na mesma cidade, eu descobri um outro palácio, mais próximo daqueles que frequentavam meus sonhos. Seu nome: Nymphenburg. Seu caminho é marcado por um longo canal, seco naqueles dias (provavelmente para manutenção, segundo contou nossa guia informal Jussara, a limeirense que mora há anos em Munique).
Cheguei a Nymphenburg no final de uma tarde fria e ensolarada. O sol já descia no horizonte, o que acentuou a magia daquela imagem. Após uma longa e tranquila caminhada, o palácio foi ficando cada vez maior. A sua grandiosidade tornou-se evidente na minha tentativa frustrada de tirar uma foto. E nas 209 fileiras de janelas (isto mesmo, fileiras!) só na estrutura principal. Cem à direita da ala central e outras cem à esquerda, simetricamente dispostas.
Nymphenburg exibe o formato típico de grande parte dos palácios, como o Louvre e Versalhes: uma ala central, duas laterais, fora prédios anexos. Uma capela/igreja integrada à estrutura completa o complexo.



Àquela hora, no cair da tarde, seu conjunto de janelas acentuava o brilho da brancura acinzentada de sua fachada. No jardim frontal, uma enorme fonte enfeita o caminho que leva à grande escadaria de duplo acesso. No “quintal”, estátuas me fizeram parar e refletir. Uma reflexão silenciosa e contemplativa, estimulada por aquela paisagem incrivelmente bucólica numa das cidades mais desenvolvidas do mundo.
Com a mesma sensação, subi a escadaria da direta (tendo como referência quem olha o palácio de frente). Observei cada detalhe, a luminária dourada, a transparência quase ofuscante das portas e janelas principais refletindo sonhos tal qual um espelho. Não entrei (fato do qual me arrependo). Permanecer ali, do lado de fora, deu ao Nymphenburg uma frieza que ele certamente não possui. Afinal, foi erguido para celebrar a vida - no século 17, como residência de verão, após o nascimento de Maximiliano 2º Emanuel, filho do príncipe eleitor da Baviera, Fernando Maria e sua esposa Henriqueta Adelaide de Saboia. Uma celebração real.



* Nas fotos, estou acompanhado dos amigos José Eduardo e Maria Helena Heflinger. A imagem aérea foi retirada do Wikipedia.

Uma jornada pela Costa Leste

Foram dez estados, mais o distrito federal (lá chamado Distrito de Colúmbia). Praticamente um dia de viagem, em três etapas. Uma jornada por 2.481 quilômetros pela Costa Leste norte-americana. De ônibus. Pela Greyhound, a famosa companhia de transporte intermunicipal dos Estados Unidos, que conheci em 1990 na primeira viagem ao país. Por algum motivo, o nome daquela empresa e seu logotipo - o tradicional puma - ficaram gravados na minha memória de adolescente. O fato é que, quase duas décadas depois, quando decidi percorrer por terra a Costa Leste, movido por um sentimento de aventura e pelo desejo de ver as paisagens, a Greyhound me veio à mente.
A definição do roteiro foi ao acaso. De certo, apenas o local de partida – Nova York - e o destino final – Miami. Entre um ponto e outro, quase três mil quilômetros e centenas de cidades. Após uma pesquisa, o trajeto foi escolhido: primeira parada, Filadélfia. Segunda, Atlanta. Dois alvos certeiros para quem desejava conhecer um pouco mais da alma norte-americana (se é que isto é possível...).

A viagem de Nova York a Filadélfia é um tanto contraditória. Ao mesmo tempo em que logo se nota o abandono da grande cidade, tem-se a impressão de que ainda não se saiu da megalópole. Só neste curto trajeto, de cerca de uma hora, são três estados – Nova York, Nova Jersey e Pensilvânia. É mais do que devia, é menos do que parece. Aquela região dos EUA abriga um amontoado de pequenos estados.
Mal Nova York fica para trás, a paisagem muda. Os arranha-céus desaparecem de vista. Dão lugar a estruturas industriais e alguns conjuntos residenciais sem nenhuma personalidade. É Nova Jersey. Já perto da Filadélfia, uma breve parada em Cherry Hill, onde só avisto um daqueles outlets que atraem os turistas ávidos por consumo. Quando a primeira capital dos EUA chega, um novo conjunto de megaconstruções surge, guardando (ou escondendo) uma das mais antigas áreas urbanas do país (é lá que está a Elfreth´s Alley, mas isto é assunto para outra postagem...).

As famosas ruas da Filadélfia foram deixadas para trás num ensolarado e agradável início de tarde de domingo. Rapidamente o Greyhound, mais velho do que eu esperava, cruzou as fronteiras estaduais, entrando nas estradas de Delaware. A paisagem industrial foi virando passado. A parada em Wilmington revelou uma cidade pacata como as do interior do Brasil num dia preguiçoso. Isto apesar do movimento portuário no rio, margeado por uma ferrovia (transporte integrado em país desenvolvido...).
A primeira de muitas daquelas pontes arqueadas que se vê nos filmes apresentou-se, imponente, romântica, dando um toque de beleza àquela paisagem naturalmente bela, às vezes deturpada pelas mãos do homem e seus prédios, ferros e chaminés.
Calmamente, o rio Christina invade a cidade (ou a cidade invade o rio?) – Wilmington é circundada também por outro rio, o Brandywine. Na estação, no cruzamento da French com a Front St., um único passageiro, um jovem, com destino à cidade grande, talvez movido por sonhos ou decepções. Na passagem da Market St. sobre o Christina, o Harry´s Seafood Grill convida inutilmente para o almoço. Não há tempo...


No caminho até Baltimore pela I-95 (ali chamada John F. Kennedy Memorial Highway), já no estado de Maryland, a exuberância do rio Susquehanna mostrou-se enfática, emprestando sua opulência às velhas pontes ferroviárias. Um pouco adiante a natureza foi perdendo a luta para o “progresso”, e plantas industriais ressurgiram, até dominarem o cenário completamente nas proximidades da cidade, outrora um marco do desenvolvimento norte-americano, hoje um dos símbolos da crise.
Em meio a aço e concreto, um rosto familiar no alto de um prédio dá as boas-vindas aos visitantes. É o Mr. Pringles, aquele rosto gorducho que estampa as latas das conhecidas batatinhas. Baltimore é uma terra industrial. Cidade relativamente grande. E feia – ao menos para quem a observa assim, de fora. Quase não se vê gente, quase não se vê vida. Até surgir o M&T Bank Stadium, nas margens da baía de Curtis, lotado para mais um desafio da liga nacional de futebol, a NFL.



Silver Spring é a outra face de Maryland. Nada de indústrias, nada do desumano concreto cinza. Ruas tranquilas, gente alegre, caminhando, pais e filhos, famílias felizes numa bela tarde de domingo. Um verdadeiro festival ainda que sem música. Na Fenton St., carros de um lado, pessoas de outro. Fechada ao trânsito, a via transforma-se num imenso calçadão, numa região de compras numa cidade que, se não exibe uma personalidade forte, ao menos mostra-se viva.

E eis que vão surgindo casinhas vitorianas, uma ao lado da outra, e cada vez mais, numa mistura curiosa do vermelho de seus tijolos com o verde de seus jardins. Elas anunciam a chegada ao centro do poder político americano, talvez mundial, a cidade sonhada por George Washington, homenageado com um grande obelisco. A capital dos EUA, longe dos círculos do poder, mostra-se muita mais uma cidadezinha do interior do que outros tantos lugares interioranos.
Pela janela, um mar de lápides brancas, perfeitamente ordenadas como ondas, ali à distância desprovidas de humanidade, mistura-se aos riscos bem desenhados em estilo neoclássico do Thomas Jefferson Memorial, na lagoa Tidal Basin. São a periferia e o centro de uma cidade nascida para mandar. Washington D.C.



Despedi-me da capital com uma bela vista do rio Potomac e de um monumento ao nada (assim apelidei aquelas três pontas erguidas, desconhecidas numa cidade com grandes monumentos). Adiante, uma jornada de duas horas. Um trajeto pelo qual apareceram novas pontes e novos rios, ora caudalosos, ora rasos e pedregosos, e até um camping, lotado daqueles motorhome - símbolos da classe média norte-americana.



Já no estado da Virginia, Richmond foi um ponto de parada e transição. Parada para descanso. Transição da luz para a escuridão. Era final de tarde e o sol caía no horizonte. Foi a última cidade daquele trecho vista ainda durante o dia. Em frente ao grande Diamante, o The Diamond, a casa dos Braves, o time de baseball local, na longa North Boulevard, eu parecia ser o único disposto a vagar pela calçada. Vez ou outra um carro desafiava minha solidão, vigiada de longe pelo grande índio espiando sobre o muro do estádio.
Os jardins perfeitamente aparados e ricamente coloridos da estação rodoviária enfeitavam uma plantação de máquinas de jornal. Dei uma folheada no Richmond Free Press. Na manchete, Barack Obama e seu polêmico discurso para os estudantes.

Daí em diante, já noite, os lugares foram simplesmente passando. Na Carolina do Norte, Rocky Mount e Raleigh pareciam cidades-fantasma em meio à escuridão e ao vazio das ruas. Em Charlotte, no mesmo estado, as luzes revelaram um conjunto de prédios, indicando uma cidade grande e aparentemente pujante.

De volta à estrada, pouco vi. A Carolina do Sul passou no breu e rendi-me ao sono. Ao lado de muitos (i)migrantes: era isto que pareciam meus companheiros de jornada. Gente simples, de uma classe média baixa que pouco se vê nos destinos turísticos norte-americanos, muitos “chicanos” e negros, alguns viajando em família, com trouxas de roupa e comida. Gente que carrega no rosto as marcas do trabalho, como constatei numa parada durante a madrugada num posto já no estado da Geórgia.
Atlanta surgiu no horizonte junto com o amanhecer. Mostrou-se, logo cedo, movimentada, com pessoas e veículos indo e vindo. Uma cidade rica, que sediou a Olimpíada de 1996. A partir daí, o último trecho da viagem foi à noite, o que fez Tifton entrar na lista das cidades que simplesmente passaram.
Ultrapassada a fronteira da Flórida, um novo cenário se impôs, quase como mágica: palmeiras agora acompanhavam a viagem, insistentemente. E resquícios de pântano apareciam aqui e ali, no meio da rodovia e debaixo da ponte.

No “sunshine state”, o sol nasceu no caminho até Orlando, onde um esquilo se alimentava com tranquilidade na estação rodoviária. Um pouco adiante, uma placa atiçou o desejo: Disney World à frente. O Greyhound, porém, virou à esquerda, rumo a Kissimmee – cidadezinha daquelas que parecem ter apenas duas avenidas que se cruzam.



Em West Palm Beach, o clima litorâneo predominava. Passaram ainda Ft. Pierce e a vizinha mais famosa Ft. Lauderdale, a “Veneza da América”, onde além de carrões nas vias pavimentadas, lanchas e iates congestionam os canais. Todas com arranha-céus de gosto duvidoso, pretensos símbolos da opulência da região, terra do “jet set” mundial, mas que pouco ou nada combinam com a paisagem ao redor.
E no meio de uma tarde de sol forte e céu azul, o Greyhound fez sua última parada numa área de Miami longe do glamour que fez esta cidade famosa. Numa estação distante do mar – cujas ondas eu experimentaria horas depois.


Um dia de chuva em NY

Aquela sexta-feira, 11 de setembro, amanhecera cinzenta e melancólica em Nova York. Eu, porém, estava incrivelmente feliz – e se Nova York é mais um estado de espírito do que uma cidade, o dia me parecia ensolarado. Na terra das oportunidades, logo descobri que a chuva – alvo de pensamentos maledicentes dos turistas – motiva o empreendedorismo daqueles que sonham “fazer a América”. Bastaram alguns passos pela calçada e na esquina já me esperava um vendedor de guarda-chuva. “Putz...”, pensei, amolação logo cedo. “Putz!”, exclamei, um vendedor providencial.
Nova York é assim, muda ao sabor do vento. E o vento que se apresentava naquela manhã anunciava chuva. Não hesitei em deixar cinco dólares com o vendedor. Escolhi o modelo mais barato, talvez nem usasse aquele objeto. Usei-o mais rapidamente do que esperava. Os chuviscos começaram e eu simplesmente agradeci por ter encontrado aquele vendedor naquela manhã naquela esquina da 6ª Avenida com a Rua 34.
Era uma chuva fina e fria. Peguei o metrô rumo ao norte, perto do Harlem. Desci na Broadway-Universidade de Columbia. Dei de cara com o Departamento de Jornalismo (seria algum sinal do destino?). Caminhei pela região em busca de duas igrejas, a Riverside e a Catedral de São João, o Divino. Riverside é, aliás, o nome do parque que margeia o Rio Hudson. Busquei abrigo em Deus. Naquele momento, abrigo da chuva. Entrei nas igrejas. O mesmo chuvisco que me levou até Deus me afastou do Riverside Park. Segui caminhando. A chuva alternava momentos de trégua com demonstrações de força – para os quais, confesso, não me preparei adequadamente.



Passei pelo Morningside e cheguei ao Central, ambos “parks”, mas só um famoso. Era a entrada oeste, pouco usual para os turistas, no lado oposto à região da Times Square. No começo foi uma caminhada agradável. Manhã nublada, parque vazio, algumas árvores caídas, áreas em recuperação após um temporal que causou danos, segundo informava uma placa. Vez ou outra surgia um corredor matinal. Corpos atléticos, desafiavam a chuva e o frio em seus moletons e camisetas, todos inusitadamente satisfeitos. Eram os únicos sinais de vida humana por ali. De vez em quando passava um carro, da segurança ou da equipe de manutenção do parque. Ah, também passavam os esquilos – ah, os esquilos, estes bichinhos espalhados por todo o país, os verdadeiros “yankees”.



Subi, desci, a chuva insistente me fez limpar as lentes do óculos algumas vezes. Vi uma professora (ou seria uma babá?) com suas criancinhas, todas amigavelmente amarradas umas às outras, felizes num passeio ao Central Park, debaixo de chuva. Vi uma jovem mãe levando seu filho no carrinho. Ela morena, ele um espécime “blond hair”. Personagens de uma manhã cuja solidão o Central Park quase vazio acentuou.

Minha previsão era cruzar o parque rumo ao leste, em direção à 5ª Avenida, numa caminhada de meia hora. Mais de uma hora depois eu ainda circulava de um lado para o outro e nada de achar a saída... Circular. Poucas vezes um verbo foi tão apropriado. A sensação era de estar andando em círculos. Andava, andava, andava rumo ao leste e quando chegava à calçada, lado errado. Voltava, mudava a direção e saía no mesmo lugar. Fui e voltei tantas vezes que já não sabia se me divertia ou me angustiava com aquela situação. Não queria admitir, mas a realidade é que eu estava inacreditavelmente perdido no Central Park.
Avistei o grande lago, Jacqueline Kennedy Onassis Reservoir. Ainda errante, decidi contorná-lo. Até que um casal veio em direção contrária exibindo uma sacola branca na qual pude ler “Guggenhein Museum”. Pronto, bastava seguir em frente. Por cautela, decidi acompanhar um grupo de estudantes que apareceu por ali. Justamente na hora em que me encontrei, a chuva apertou. Na beira do lago, o vento forte acentuava o frio e agitava a água. Imaginei um tsunami. Os pingos, agora mais fortes e constantes, dificultavam a caminhada e a visão. Não a ponto de impedir que eu identificasse aquela estrutura cheia de curvas brancas, ascendentes, desafiadoras, estranhas numa cidade quadrada. Eis o Salomon Guggenhein Museum. E o guarda-chuva pôde finalmente ser recolhido.


Contudo, o “meu” 11 de setembro reservava mais. Na saída do museu, um vento forte, daqueles que fazem a capa do guarda-chuva virar do avesso, marcou o fim daquele produto comprado poucas horas antes. E não havia a quem reclamar. Como mágica, um novo vendedor surgiu. E tive que desembolsar desta vez dez dólares na tentativa de obter um exemplar aparentemente mais resistente.
Logo descobriria que a desejada resistência não passou de aparência. O novo guarda-chuva suportou apenas a caminhada pela 5ª Avenida no trecho onde Nova York ferve (e a que, para muitos turistas, a cidade se resume). Foram dezesseis quarteirões à procura de um poodle branco perdido dois anos antes (isto já é outra história). Uma caminhada assim para descobrir que entre todas as raças de cães possíveis, só o poodle não estava lá na FAO & Schwarz, a famosa loja de brinquedos na esquina leste do Central Park.
Durante essa peregrinação, muitas senhoras e senhores elegantes em seus ternos e vestidos comprados ali mesmo, num dos metros quadrados mais caros do mundo, passaram por mim dividindo o mesmo drama, um guarda-chuva chinês que mal suportava a chuva – menos ainda as rajadas de vento que começaram a se manifestar. A cada esquina, a cada semáforo, uma cena se tornava comum: dezenas de turistas, ávidos por passeios e compras, de olho nas tentadoras vitrinas da 5ª Avenida, contorciam-se para combater o que naquele momento virou um temporal. E para, em vão, tentar impedir a destruição do frágil guarda-chuva chinês.
Sem poodle, a FAO ao menos serviu para me guardar da chuva, algo que o guarda-chuva não fazia mais.
Tão logo o temporal deu uma trégua, reiniciei minha caminhada, desta vez cruzando a margem leste do Central Park rumo ao Columbus Circle, à procura do Museum of Art and Design, o MAD. Em busca de um abrigo seguro. Tive tempo ainda de parar no meio da 5ª Avenida para registrar o (pouco) movimento, mas a chuva – que decididamente escolheu protagonizar esta história – insistia em me fazer companhia. E o guarda-chuva comprado no Guggenhein não resistiu os três longos quarteirões que separavam a 5ª da 8ª Avenida, as esquinas do acesso leste do Central Park. E lá se foi para a lixeira, onde encontrou seus pares, tristes objetos abandonados por seus donos. Assim, a cada esquina, a cada lixeira, minha solidão se foi. Não só a chuva me acompanhava, como também a sensação de não ter sido o único a ajudar alguns vendedores a “fazerem a América” naquele 11 de setembro.


Eu ainda tomaria mais um pouco de chuva e frio até ser acolhido pelo MAD, não sem antes dar uma parada estratégica no Time Warner Center. Estava a cinco quarteirões do “Late Show with David Latterman”. Não quis, porém, vê-lo. Àquela altura, já havia descoberto prazer nos desafios de passar um dia chuvoso em Nova York. E já havia feito da chuva uma agradável companheira. Porque em Nova York nada pode ser mais triste do que não se divertir. Até debaixo de chuva!



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