"Pick-up": uma aventura em Washington

Tínhamos chegado a Washington D.C. há poucas horas e já estávamos no National Mall, a longa via que concentra as estruturas do poder nos Estados Unidos. De um lado o Capitólio, a sede do Congresso; de outro o Lincoln Memorial, uma homenagem ao ex-presidente Abraham Lincoln, republicano que governou entre 1861 e 1865. No meio, a Casa Branca.
Decidimos ir até lá caminhando (estava com dois amigos). Foi uma jornada relativamente longa - não há forma melhor de conhecer um lugar do que caminhar despreocupadamente por suas ruas. Só não havíamos previsto a possibilidade de uma mudança no tempo. E no final da tarde, o céu na capital dos Estados Unidos, no Distrito de Colúmbia, foi ficando escuro e cinzento. Até que pequenas gotas de água começaram a despencar.
Num primeiro momento, optamos por enfrentar o que ainda era um chuvisco. Mas a intensidade das gotas foi aumentando e, numa revisão de cálculos (que considerou a possibilidade de um temporal e a distância que deveríamos percorrer a pé), mudamos os planos. Era hora de pegar um táxi. Paramos num cruzamento numa área verde próxima à Casa Branca e começamos a dar sinal. Passou um, passou outro e ninguém se dispôs a pegar aqueles três turistas.
Até que uma alma bondosa, num carrão verde escuro - tipo Mercedes, Jaguar ou (o que é mais próximo da verdade) um Dodge - parou. Entramos. Como havia se tornado hábito, meu amigo foi no banco da frente e a outra amiga e eu sentamos atrás. O motorista tinha uma feição árabe, como também é praxe por aqueles lados.
Enquanto meu amigo informava o nome do hotel, nosso destino, risos soltos se espalhavam pelo carro, fruto das lembranças das histórias da viagem. Sem pestanejar, começamos a fotografar – tudo era motivo para fotos e aquele carrão verde, com estofado verde e maçanetas cercadas por uma madeira estilosa, não poderia ficar sem registro. Tudo isso enquanto o táxi avançava um quarteirão, até o semáforo.
Quando o sinal ficou verde, o nosso taxista cruzou com um colega, também num carrão, que vinha em sentido oposto. Pararam e trocaram rápidas palavras. Em ÁRABE (e este é um detalhe crucial para esta história).
Dali por diante, o que se viu foi uma daquelas situações inusitadas, essenciais em qualquer viagem. O taxista que nos levava, ou que pelo menos pretendíamos que nos salvasse daquele fim de tarde chuvoso em Washington, virou-se e começou a dizer: “pick-up”, “pick-up”, “pick-up”. Assim mesmo, repetidamente. Trocamos olhares desentendidos. Arriscamos algumas traduções, com as versões mais diversas. Nem a nossa amiga, professora de inglês, captou o significado daquelas simples palavras que o taxista insistia em pronunciar. “Pick-up”, “pick-up”, “pick-up!”
A tentativa até então frustrada de comunicação se resolveu quando meu amigo disparou: “Ele está dizendo para sairmos do carro que o outro taxista, amigo dele, vai nos levar”. Saímos. O táxi-carrão verde então se foi. E o colega dele do outro lado da rua também. Definitivamente, não tínhamos entendido nada. Nem sequer a situação que acabávamos de vivenciar. Afinal, como o meu amigo pôde entender o que o taxista falou com o colega se eles conversaram em... ÁRABE?
Foi justamente o que, num repente de luz, eu perguntei. Só então demos conta da nossa burrice triplamente qualificada.
Sem táxi, na chuva, o jeito era rir e seguir tentando. E eis que uma outra alma bondosa, um taxista com aparência meio árabe, meio marroquina, ofereceu-se para o serviço. Durante o relativamente curto trajeto até o hotel, descobrimos que o motorista era do Egito e que estava há anos em Washington. Soubemos também que, via de regra, os taxistas não apreciam fazer trajetos curtos (leia-se por meros dez dólares) na capital dos Estados Unidos – onde, prevê-se, poderosos gastam dinheiro gordo com táxi.
O taxista egípcio explicou que é comum um motorista, durante uma mesma viagem, pegar mais de um passageiro a fim de aumentar os lucros do trajeto. Foi o que havia acontecido na nossa chegada à cidade, quando um jovem canadense dividiu conosco o táxi no caminho da rodoviária ao hotel.
O simpático - e àquela altura caridoso - egípcio nos deixou no nosso destino e se foi. Escapamos da chuva, que não chegou a apertar. Economizamos um pouco de tempo e gastamos alguns dólares. Descansamos as pernas e alimentamos a alma com as risadas que se sucederam ao episódio. E o mais importante: ganhamos uma história para contar por toda a vida (da qual o único registro é uma foto desfocada dentro daquele táxi-carrão verde).


PS: até hoje não descobri o que aquele “pick-up” (ao menos foi o que entendemos) significou. No dicionário, as opções são “pegar, apanhar, captar, adquirir, selecionar, conseguir, catar, arranjar, separar com os dedos, escolher cuidadosamente...”.

* A amiga na foto é a jornalista Kelly Camargo; o outro amigo da história é o publicitário Cristiano Persona.

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