Na mesa de um bar

Via Brera, Bar Brera, terça-feira, dezenove de outubro, dezessete horas. Fim de tarde em Milão com o sol começando a se deitar. Um senhor gordo, vestindo uma boina e elegantemente escorado numa bengala, chega com dificuldade. “Scusi”, pede. E fala comigo, forçando-me a quebrar o silêncio e a buscar um improviso: “Io non parlo italiano...”. Ah, e interrompendo minha leitura do “la Repubblica” ao sabor de um chocolate quente e de um brioche.
Aquele senhor gordo parece socialista ou de direita. Fascista? Contraditório, mas é minha impressão. Aparentemente contrariado com não se sabe o quê (seria com a minha recusa ao diálogo?), ele chama a atendente do bar e pede um capuccino. Enquanto espera, resmunga de vez em quando (com mais frequência do que devia, penso).
O capuccino chega. Ele reclama e mexe na bebida. Ou mexe na bebida e reclama. Ou as duas coisas ao mesmo tempo. O fato é que algo o desagradou naquele capuccino. Algo que a atendente não compreende, embora tente ser simpática.
Volta e meia ele inicia uma lição de moral, ainda que solitariamente. “Para ter uma pessoa justa, antes é preciso parir uma pessoa justa”, diz, italianamente. Justo. Enquanto filosofa, continua mexendo no capuccino e reclamando. A atendente volta e retruca, já um tanto sem paciência, embora ainda tente parecer simpática. O senhor gordo, porém, é impassível no veredicto: “Pedi um capuccino e devia pagar metade”.
Pelo que entendi, ele achou exagerada a cremosidade da bebida. O “colarinho”, fosse aquilo um chope.
O senhor gordo se vira, estica o braço em direção aos guardanapos na minha mesa e pergunta: “Posso?”. Respondo positivamente com um rápido sinal com a cabeça.
Ali, no Bar Brera, naquela tarde, Milão volta no tempo. A 1968. Um homem passa levando uma obra de arte embaixo do braço (bem, não exatamente embaixo, mas da forma como ele consegue carregar aquele grande quadro). Duas mulheres passam fumando e conversando elegantemente vestidas no outono italiano. Dois jovens com cara de revolucionários surgem e saem apressados, um deles com cigarro em uma das mãos, pose de intelectual, jaqueta de couro e barba por fazer. Um casal apaixonado apresenta-se, trocando afagos e sussurros e beijos na mesa em frente (mais afagos que sussurros e beijos, é verdade).
Um outro homem, também velho, mais moderno (ao menos nas vestimentas, uma jaqueta vermelha chamativa), entra no bar. Logo que chega, é saudado pelo colega gordo que não gostou do capuccino. Parecem amigos de longa data, talvez tenham dividido as aventuras e desventuras de 1968. Agora, porém, são apenas dois senhores gordos, o da jaqueta vermelha que não bebe nada e o do casaco elegante que reclama do capuccino.
Conversam longamente, relembram fatos, analisam a história, de anônimos e famosos. Compreendo (eu acho...) meras palavras esparsas. Frases deslocadas, isoladas. “Um grande artista, um grande artista!”, fala o senhor gordo de bengala. Certamente estão comentando sobre algum nome da música ou do cinema ou da televisão.
Resolvo deixá-los. Para tristeza do Bar Brera, o consumo dos dois senhores gordos não passará daquele capuccino. Para tristeza das pessoas nas mesas ao lado, a conversa não passará de lamentações saudosistas. Contra a arte, a política, o esporte, contra a vida do mundo moderno. Nada ali passará naquela tarde, só o tempo. Para minha tristeza.

Dobro o “la Repubblica”, coloco embaixo do braço e parto, passos firmes em direção ao desconhecido. Deixo ali naquela esquina, naquela mesa de bar, um pouco de mim. Levo comigo as lembranças e a saudade. Uma história que nem o tempo será capaz de fazer passar.

A dois passos do paraíso

Se o paraíso existe na Terra, estive a dois passos dele. E posso garantir: é espetacular! Fica a apenas duas horas de trem de Florença, rumo ao oeste, mais precisamente na direção do mar da Ligúria. E que belas águas tem aquele mar...
O paraíso terrestre consiste, na verdade, num conjunto de cinco vilas esquecidas no tempo, algumas à beira-mar, outras no topo da montanha, todas inacessíveis por carro. Lá só se chega de trem (ufa!) ou... isto mesmo, caminhando. O melhor é misturar os dois. Para quem parte de Florença, o caminho começa em La Spezia, a última cidade antes do Parco Nazionale delle Cinque Terre. Para quem parte de Gênova, o caminho é no sentido contrário.
Cinque Terre é o nome que ganharam as tais cinco vilas – Riomaggiore, Manarola, Corniglia, Vernazza e Monterosso al Mare. Junto ao silêncio das ondas do mar da Ligúria e ao azul (ou seria verde?) brilhante e forte de suas águas, elas formam um conjunto harmonioso e romântico ao oferecer pequenas casinhas coloridas e o verde da mata, pontuado vez ou outra por parreiras que parecem desafiar a gravidade.
Da estação de trem de Riomaggiore, a primeira visão já faz brotar um “uau!!!”. A ligação entre criação e criador é imediata. E nós, criaturas, ali fascinados, contemplando a visão do paraíso.


O trajeto até Manarola é suave e merece ser feito a pé. Não se preocupe com esforço físico, ele não será necessário. A trilha é pavimentada, horizontal e repleta de amor. Via dell´Amore, é este o nome. Por todo o trecho, que não exige mais do que 15 minutos de caminhada, cadeados colocados pelos turistas em qualquer grade que se apresenta dão o tom de amores passados unidos por todo o sempre.
É, porém, a visão à beira-mar que encanta e apaixona. As curvas do penhasco têm a incrível capacidade de sublimar qualquer medo, provocar um transe inesquecível, fazer o horizonte parecer infinito, como infinito é o amor.
Aproveite cada instante, observe as ondas batendo nas pedras dezenas de metros abaixo, sinta o cheiro do mar, aprecie o brilho do sol nas águas escuras da Ligúria, veja as plantas que ajudam a dar um pouco de vida àquelas pedras brutas do penhasco.

Quando menos se espera, surge Manarola. Até Corniglia, fui obrigado a ir de trem, já que o trecho para caminhada estava temporariamente fechado. Na verdade, o trem me deixou perto de Corniglia. Para atingir a cidade de fato, é preciso enfrentar uma árdua escadaria em “S”. São 382 degraus montanha acima até avistar um “Complimenti. Sei a Corniglia, al centro delle Cinque Terre. Benvenuto”. É o que anuncia a placa aos sobreviventes. Impossível não pensar como os poucos corniglianos conseguem subir e descer até a estação de trem diariamente...
O ar puro, a proximidade das parreiras com as uvas já secas anunciando o fim do outono, a vida tranquila de quem por força do destino ou por sua própria escolha foi viver num pedaço do paraíso recompensam o esforço. Ajudam o corpo a descansar e a alma a se reabastecer para o que virá.
O trecho até Vernazza promete. Antes de entrar no caminho das pedras, literalmente, a placa alerta: uma hora e meia de caminhada. É o momento de escolher, o trem está apitando... Para quem está a dois passos do paraíso, caminhar é preciso. Parto para uma das maiores aventuras da minha vida. Uma longa caminhada, difícil, suada, montanha acima e abaixo (sim, há um sobe-e-desce constante durante o trajeto), passando por trechos de pedra, lama, escadas quase penduradas num penhasco, ao lado de parreiras bem vestidas (uma tela as protege).
Pelo caminho, a solidão é quebrada ora por pequenos lagartos, ora por colegas de aventura que deixam escapar um reconfortante “buongiorno” – ou “bon jour”. Ali, no paraíso, sem outra opção que não a de seguir adiante, a visão privilegiada e única serve de combustível para as pernas, já cansadas.

Para quem, como eu, não tem preparo físico (sim, aqui ele é imprescindível), cuidado: a tentação pode surgir no meio do caminho impondo pensamentos descabidos: “o que estou fazendo aqui?”, “onde estava com a cabeça quando deixei o trem partir?”.
Basta, porém, lembrar que se está no paraíso, e que lá tudo é possível e que as forças da natureza e da vida vão nos guiar para que logo os maus pensamentos desapareçam e o verdadeiro sentido daquilo tudo se restabeleça: a superação, a força que se busca dentro de si, a certeza de viver um momento único da forma mais profunda.
Até que se descem os últimos 200 metros de altitude (não de percurso, que é muito mais longo) numa escada improvisada de pedra, com os pés quase calejados. E Vernazza está ali, com a imagem de uma santa a abençoá-la, a abençoar-nos, os viajantes. Ruas formadas por escadarias unindo casinhas vermelhas, alaranjadas, amarelas, roupas penduradas pela janela, alguns degraus mais até a “rua” principal, onde um bando de turistas aprecia um gelato e descansa, todos igualmente cansados e inebriados.


Vernazza é, talvez, a mais gostosa das Cinque Terre, embora não tenha a praia de Monterosso, contagiante, para fechar a viagem paradisíaca numa tarde de outono que começa a cair. E ver, à beira-mar, o sol se pondo, deitado naquela praia pedregosa, sem nenhum pensamento, livre de qualquer tormento, enquanto uma mãe brinca com seus dois filhos e um casal vive a paixão ali, estendido, dá a certeza de se estar mesmo a dois passos do paraíso.



PS: uma dica aos futuros viajantes é comprar o cartão Cinque Terre Treno antes de iniciar o passeio. Ele literalmente abre o caminho. É vendido na estação de La Spezia, no setor de informações turísticas, facilmente visto logo no desembarque, identificado com a marca do parque. Com o cartão, você pode usar os trens a partir de La Spezia quantas vezes quiser durante o dia e também pode acessar a trilha, entre outras vantagens.

Itália, um reencontro

Sempre soube que minha sonhada viagem para a Itália seria, na verdade, um reencontro. Com a minha história e com a minha fé. Foi com esse espírito que embarquei, foi com esse espírito que cruzei o Atlântico, foi com esse espírito que tive, naquela manhã de 18 de outubro, a primeira visão da terra nostra, “la terra mia”. Eram nada mais do que aqueles amplos quadrados em que se transformam bairros, matas e plantações a alguns milhares de metros de altura. Uma visão quase turva, porém suficiente para colocar meus pés no chão, trazer-me à realidade, provocar um frisson silencioso e um tanto contido. Ensaiei um sorriso solitário. Na mente, um pensamento dominante: “finalmente estou na Itália”.
Viajar por si só é uma experiência fascinante. Quando a ela se misturam os sonhos, o fascínio ganha uma aura mágica e única, indescritível.
Durante os dias em que pisei naquele solo – às vezes sacro, às vezes profano, muitas vezes familiar, outras tantas estranho -, senti todos os sentimentos que Frances Mayes atribuiu a um viajante. “O viajante tem uma inquietação”, disse ela. Talvez seja isso que tenha me levado ao mesmo lugar de onde, há 122 anos, partiu uma senhora chamada Marina Vialle, mãe de Natale Degáspari, pai de Regina Helena, minha mãe.
“Viajar é um assunto peculiar. As pessoas procuram coisas diferentes quando viajam.” Talvez seja isso que tenha me levado às alturas de San Gimignano, no topo de uma montanha amarelada da Toscana, e à beira do mar, na praia pedregosa e tranquila de Monterosso. “Para qualquer um, no entanto, conhecer as pessoas locais, e sair do seu esquema para interagir com elas, vai adicionar enormemente à experiência de viagem. Além disso, aprender um pouco sobre a língua local. A textura do lugar é sentida imediatamente através da linguagem”, ensinou a escritora, autora do best-seller “Sob o Sol da Toscana”. Talvez seja isso que tenha me levado ao Bar Brera naquela tarde, ao lado daquele senhor enfurecido por um capuccino que não viera a seu gosto.
“O senso de busca, o desejo da descoberta e um conhecimento que transcende o foco em atrações, museus e lojas. Quando vejo alguém sentado sozinho num café, completamente envolvido em pensamentos, meditações e questionamentos, sei que aquela pessoa está tendo uma experiência mais profunda do lugar e que aquela viagem vai ser memorável.” Talvez seja isso que tenha me levado àquela banca para comprar a edição do “la Repubblica”, pedido um croissant e um chocolate quente naquele mesmo bar e ficado ali, quase inerte, reflexivo, observador, contemplativo, transcendente, vivendo um momento inesquecível e desejando descobrir o que nem eu sabia.
“A Itália me mudou bastante.” Frances Mayes e eu. Cada um a seu modo, sob o sol da Toscana ou a chuva de Milão, nos penhascos de Cinque Terre ou nas vielas de Siena, nos canais de Veneza ou na arena de Verona. A Itália fez-me mais otimista, mais confiante, mais agradecido acima de tudo. Tudo agora torna-se bônus. Tudo agora ganha um novo sentido. Tudo agora é diferente depois de reencontrar minha história e minha fé.
E pensar que ainda deixei muito por fazer. “A Itália é eternamente nova para mim. Cada temporada que passo por aqui me revela prazeres inesperados”. Eis a confissão de Frances Mayes. Eis a minha profissão de fé. Naquele solo, fui um viajante definitivo. Definitivamente a Itália entrou em minha vida.

PS: quem quiser conferir a íntegra da entrevista da escritora Frances Mayes, cujos trechos (entre aspas) foram reproduzidos nesta postagem, basta clicar aqui.

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