Um encontro emocionante

Foi um encontro custoso. Teve que ser marcado com dois meses de antecedência. Foram necessários seis telefonemas até a confirmação do dia (19 de outubro) e horário (10h30). Sabia de antemão que teria apenas 15 minutos para estar lá, frente a frente com ela. Éramos apenas 26 naquela sala, todos ansiosos pela abertura da porta eletrônica – que, logo descobriríamos, antecedia outra e outra e outra. A próxima só abria quando a anterior estivesse devidamente fechada.
E assim, de porta em porta, câmara após câmara, avançamos. Até que a última porta se abriu para um amplo salão, antigo refeitório dos monges dominicanos. Um local espantosamente simples para o tesouro que guarda. Ali, à direita, praticamente à meia luz, exposta há mais de 500 anos, “Il Cenacolo Vinciano”, “The Last Supper”, “A Última Ceia”, obra-prima do mestre renascentista Leonardo Da Vinci.
Pintada diretamente na parede para ornamentar o refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, “A Última Ceia” é uma sobrevivente. Manteve-se apesar da agressão dos monges que, em 1652, decidiram alargar a porta que levava à cozinha, danificando uma parte da pintura. Resistiu à ocupação pelas forças de Napoleão em 1799 e – quase milagrosamente – aos ataques aliados na noite de 15 de agosto de 1943, durante a Segunda Guerra Mundial. Suportou – bravamente - a ação do tempo, que vem apagando os traços originais (os primeiros registros de que a pintura começava a se deteriorar datam de 1517 e são atribuídos a Antonio de Beatis; em 1566, Giorgio Vasari escreveu que “do original de Leonardo ... agora só se pode ver uma mancha”).


E cinco séculos depois ela estava ali, inacreditavelmente linda, exibida, toda só para mim (sim, havia mais pessoas no salão, mas eu me sentia o único). Poucas vezes o verbo contemplar serviu tão bem a uma ação quanto naquele momento. E assim fiquei os meus 15 minutos, apenas contemplando.
A olho nu, a pintura parece ter sido molhada – é a umidade da parede que a danifica. Assim são as já apagadas cores, que alternam pontos fortes e fracos. O fundo brilha, iluminado pela paisagem que se vê pelas janelas. Há uma luz incidente na lateral direita. O efeito luminoso se soma à profundidade (marca genial dos renascentistas) de modo tão bem acabado e harmonioso que tem-se a nítida impressão de que somos parte daquele cenário, que estamos ali fechando o ambiente.
Ao centro, já sem os pés - amputados pela porta alargada pelos monges -, Jesus aparece absorto em meio à discussão dos discípulos após a revelação da traição que estaria por vir. Em grupos de três, eles conversam. “Serei eu, Senhor?”, ouve-se diante do movimento criado pelas mãos habilidosas de Da Vinci. De perto, observam-se detalhes que escapam a uma visão desatenta. A toalha da mesa, por exemplo, não é puramente branca. Possui delicadas rendas azuis.

É inevitável não pensar nas teorias levadas a amplo conhecimento público pelo escritor Dan Brown em seu livro “O Código Da Vinci”. E como quem teve o privilégio de olhar a cena tão de perto, sou forçado a admitir: a teoria pode não ter o menor fundamento, mas que a imagem que representa o apóstolo João é de uma mulher, isto é. Não seria absurdo compará-la à Gioconda. Os traços são absolutamente femininos – e duvido que isso seja fruto do acaso (só nunca saberemos qual foi o objetivo do mestre renascentista nunca se saberá).
Outros aspectos reforçam essa tese – e as consequentes teorias. É o caso das cores das roupas de Jesus e João, semelhantes, porém inversas. O apóstolo veste azul com um manto vermelho; Jesus o oposto, um traje vermelho sob um manto azul. Seria mais um sinal, segundo a teoria, do feminino e do masculino. Também chama a atenção a letra “V” formada pelo braço direito de Jesus e pelo esquerdo de João, algo que não se vê em nenhum outro ponto da pintura. Seria a representação do ventre, conforme Dan Brown.
A figura de João seria mesmo Maria Madalena...?
Não importa. O que valeu foi viver a experiência de um encontro tão raro, profundo e emocionante. E do qual aproveitei todos os instantes. Sob o olhar atento da senhora de cabelos brancos, face fechada, óculos na ponta do nariz, que vigiava ininterruptamente os curiosos naquele salão, ainda parei na saída para dar mais uma – a última olhada. Na “Última Ceia”.

PS: a igreja de Santa Maria delle Grazie fica numa região mais afastada em Milão, uma área residencial e bastante tranquila. Não chega a ser longe, apenas está fora do centro turístico. Por esta razão – e pela dificuldade de conseguir reservar o ingresso para ver a obra de Da Vinci -, muitas pessoas abrem mão de visitar o lugar. É um pecado!
Embora a igreja tenha um interior relativamente simples se comparado ao de outras, num estilo que lembra o mourisco e aparentes mosaicos em pedra, nada – absolutamente nada – substitui a emoção de ver “A Última Ceia”.

Em tempo: a pintura com a imagem que dá nome ao lugar está exposta numa pequena e modesta capela lateral, à esquerda.






* As imagens da pintura e do interior do salão foram retiradas da Internet, respectivamente do Wikipedia e do site "O Pitoresco". Não são permitidas fotos no local.

Um encontro com a história

Às vezes, a história cruza nosso caminho das formas mais surpreendentes. Quando estive em Munique com dois amigos pesquisadores, em outubro de 2005, tinha na agenda um almoço com uma psiquiatra cuja bisavó vivera na Fazenda Ibicaba no século 19 – na época, a propriedade ficava no território de Limeira (hoje localiza-se em Cordeirópolis). Esta era a nossa “pauta” naquele encontro. Contudo, a nossa anfitriã - não bastasse a saga da bisavó que emigrara para o Brasil ainda bebê, perdera a mãe e fora adotada por um dos filhos do senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, dono de Ibicaba - guardava outra história para contar. Uma história que, passados mais de 60 anos, continua vida em toda a Europa – e, de resto, em todo o mundo.O almoço corria tranquilamente. Nós, interessados na história da família; ela, aproveitando a visita de estrangeiros curiosos para refrescar as lembranças. E em meio ao peixe ensopado (era este o cardápio) foi surgindo um relato com contornos dramáticos de uma família que se viu dividida em razão de um homem cuja loucura o mundo conheceu: Adolf Hitler.O avô da nossa anfitriã era nazista. Aderira ao partido (e às ideias) do Führer desde o princípio. Guardava na memória o tempo em que fora prisioneiro na França durante a Primeira Guerra Mundial. Vira no nazismo a oportunidade de resgatar sua autoestima, a autoestima de seu país, de mostrar a “superioridade” da raça ariana. A avó, porém, resistia. Era contrária a Hitler. O conflito familiar se estabeleceu. O homem era rude, bravo. À mulher, restava a resiliência. E assim foi.Especialista em química, o avô trabalhava numa grande empresa farmacêutica alemã. Como membro do alto escalão de Hitler, usou seus conhecimentos em favor das atrocidades nazistas. Ajudou a desenvolver (conceber ou executar, não sei exatamente) a câmara de gás, responsável pelo assassinato em massa de milhares de judeus durante a Segunda Guerra. Na França, como prisioneiro de guerra anos antes, tinha sido vítima de experimentos com vacinas ou algo do gênero.O relato foi feito com uma dor contida e um senso de desaprovação. Nossa anfitriã, embora não manifestasse claramente, com todas as palavras, indicava seu descontentamento com o passado nazista de parte importante da família – o avô, o homem, a referência da casa. Foram para ela anos de “isolamento, negação e medo”.O fim da vida do avô não foi citado. Tampouco perguntamos. Ao ouvir um relato pessoal e dramático dessa natureza, mantivemos o silêncio, tomados pela surpresa e emoção. Em respeito à memória da família e à nossa anfitriã. Aquela senhora – na altura dos seus 80 anos – abria seu coração ao contar uma parte polêmica (reprovável até) da história de sua família, de sua vida.E como o destino e a história caminham juntos, com a derrota do nazismo em 1945, coube a ela compor o grupo de cientistas que o governo alemão enviou posteriormente aos Estados Unidos em missão especial a fim de trocar experiências e levar à Alemanha novos conceitos.Àquela altura do almoço, tive a certeza de que vivia um momento único, privilegiado. Imaginei quantas outras pessoas teriam histórias semelhantes, de divisões e máculas, fatos a contar e a esconder. Descobri como a Segunda Guerra ainda é presente naquele solo, onde milhões de pessoas pereceram. Pensei quantas dessas vidas perdidas acabaram por mudar o rumo de famílias, de países, da história. Ali, naquele raro e excepcional momento, à mesa do almoço num apartamento de classe média em Munique, vi uma parte importante e terrível da história da humanidade passar à minha frente. Vi a história em carne e osso, aquela história que vai além dos livros. Uma história que se misturou para sempre àquela inesquecível viagem.

A Toscana existe

Todos os adjetivos possíveis já devem ter sido utilizados para descrever a beleza da Toscana na literatura, turisticamente ou não. Ainda assim, a região não para de seduzir quem a visita pela primeira ou enésima vez.”
Pedro Carrilho (Itália, “Folha de S. Paulo”, Viagem, 16/6/2011)

As cores, o clima, os sabores. Só quem tem contato com a Toscana entende o que fez a escritora Frances Mayes largar tudo para viver sob aquele sol. Encravada na região centro-norte da Itália, a Toscana é o berço da arte, do Renascimento. É a terra da uva e do vinho. É onde uma parte importante da história italiana, da nossa história, desenrolou-se. De Firenze a Siena, de San Gimignano a Lucca.
Este texto poderia terminar aqui e você já teria motivos suficientes para conhecer essa região. No entanto, é preciso dizer mais. A Toscana merece mais. Aquelas montanhas amarelo-esverdeadas, com as cores e o aroma das uvas e das olivas, emanam uma magia encantadora. Sob a luz do sol, aquelas cores adotam um brilho indescritível. Reluzente tal qual ouro.
Olhados ao longe, das curvas tortuosas das estradas toscanas, os vinhedos formam caminhos que parecem levar ao olimpo. São como ondas no mar. Geram espumas de um sabor ímpar, apreciadas em todo o mundo. Os vinhos da Toscana formam com o queijo pecorino e o salame um conjunto harmonioso, especial. Saúde e sorte combinadas de modo perfeito nas refeições.
Depois, que tal um sorvete? Que seja o da Gelatería Pluripremiata, eleito por duas vezes o melhor do mundo, na pequena e reservada San Gimignano, terra das 14 torres no topo da colina Val´Elsa. Torres vistas ao longe, sombreadas, como um brinquedo de tijolinhos que fez a infância de muitos. Ah, San Gimignano, suas ruas de pedras vermelhas, suas paredes de pedras bruscas, sua muralha secular são um mergulho no tempo, num tempo que parou séculos atrás, quando eram muito mais numerosas as torres.
As pedrinhas vermelhas também colorem o centro histórico de Siena, cidade milenar que mantém a tradição secular do Palio e que se gaba de ter o primeiro banco do mundo ainda em atividade e de ecoar ares de democracia quando isto estava distante das cidades-estado italianas. Cidade que almejou a riqueza ao se ver encravada na rota Roma-Firenze e que disputou fama com os florentinos.
Ah, os florentinos. Que sorte a deles! Viram florescer em suas terras o que de mais iluminado a arte produziu, o Renascimento. Firenze (ou Florença, como queiram) é o berço de um tal Leonardo e um certo Miguel, o Buonarroti. De Donatello e Rafael e tantos outros. Berço natalício de alguns, berço artístico de todos.
Andar pelas ruas de Firenze é encontrar com essas figuras em corpo (como nas esculturas de David, a original e suas cópias) e em alma (como ao ver o menino francês no alto da Piazza Michelangelo apreciando o Duomo e rabiscando numa folha branca traços quase divinos). E, tenha certeza, estes encontros são inevitáveis e imprescindíveis – não creia que os clichês (turísticos, no caso) sempre serão ruins, há muito de original ao se deparar com as marcas deixadas ali por homens que ajudaram a mudar a nossa visão de mundo, a transformar a visão do mundo. A originalidade consiste em buscar, dentro de si, os motivos que o tocam – e cada um terá os seus.
E por mais que Firenze seja inevitavelmente o lugar da arte de Michelangelo e Da Vinci, ela é também a cidade às margens do rio Arno, cujas águas estampam uma beleza singular, colorida à luz do dia, brilhante à luz da lua. Ela é, de alguma forma, a essência da Toscana, uma terra que guarda segredos e revela tesouros, que cresce e se preserva como uma donzela, uma “bella dona”.
Firenze é o centro urbano de uma região marcadamente rural. A Toscana, um lugar onde o sol brilha mais forte só para realçar a beleza das flores, onde a chuva cai mais límpida só para fazer brotar as formas mais belas de vida. Um lugar para chamar de seu, ainda que à sua volta existam milhares de turistas. A Toscana convida à intimidade e ninguém terá vivido verdadeiramente a essência deste pedaço de chão – seria profano chamá-lo de sagrado? - sem estabelecer ali uma relação umbilical.
Sim, a Toscana existe. Que sorte a nossa!

PS: texto originalmente escrito para a revista “Máxima News”, da jornalista Rosiane Tank.

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