A Veneza dos venezianos

“Com seus canais fotogênicos e palácios à beira d’água, Veneza é idilicamente romântica. Não é de se estranhar que 18 milhões de turistas visitem a cidade flutuante a cada ano. Mas o que é surpreendente é que os moradores sitiados ainda conseguem desenvolver uma cidade para si mesmos – um pastiche de restaurantes, bares, praças tranquilas e ilhas mais calmas e afastadas.”
Ondine Cohane, no UOL e New York Times Syndicate

O balé dos albatrozes no Campo Santa Margherita encanta. Um movimento orquestrado e circular. O grasnar das aves forma com sua dança uma sinfonia perfeita. É a vida em Veneza, uma cidade que vive em função da água. Não, quem esteve em Amsterdã, a Veneza do Norte, ou em Fort Lauderdale, a Veneza da América, não tem ideia do que é Veneza, a original. Amsterdã e Fort Lauderdale têm seus canais como um importante ingrediente de sua existência, mas nenhuma delas vive em função disso. Veneza é diferente. A cidade definitivamente não existiria – ou não seria a mesma – sem a água. Tanto é que lá, ao contrário das genéricas, o transporte público funciona na água. O mais relevante para mim, porém, foi descobrir que os venezianos existem! Sim, a cidade parece um cenário feito para turistas, mas ela tem vida além do turbilhão de gente de todos os cantos do mundo que invade suas “ruas” diariamente. Seus moradores são pessoas comuns, que desfrutam a possibilidade singular – e o privilégio - de levar os filhos à escola, ir à igreja, passear e trabalhar numa cidade sobre as águas. No Campo Santa Margherita, as venezianas (eis o nome das mulheres de Veneza...) - elegantemente vestidas - saem às compras com suas sacolas. Pelo que se vê, e não podia ser diferente, o almoço do dia será peixe ou outro fruto do mar qualquer. Estes são os produtos predominantes na feira, onde pescadores-vendedores mostram agilidade na limpeza e no corte dos pescados. Mãos ágeis que chamam a atenção. As lulas são bastante apreciadas – haja vista a quantidade de pedidos.






O movimento é grande também no entorno do Mercato del Pesce al Minuto, o famoso Mercado de Peixe na região do Rialto. A água que lava os peixes escorre pelo calçamento, dando ao lugar um cheiro característico. Barcos pesqueiros vêm e vão com seus carregamentos. Por um instante, tem-se a impressão de que os peixes simplesmente saltam dos canais para as barracas. Peixe fresco! Tal como no Brasil, os peixes da feira recebem um embrulho de jornal. Notícia velha, notícia fresca... Bem perto dali, os temperos de Veneza formam um conjunto decorativo – é o capricho das mãos venezianas revelado na feira e nas lojas. Cores, cheiros e sabores juntos, em ramalhetes de pimenta ou em pratos de especiarias. Em pó ou em pedaços, “in natura” ou desidratadas, para todos os tipos de pratos e gostos. E tem ainda repolho, alface, laranja, maçã...





Quem não vai à feira sai para passear com o cãozinho de estimação. Sim, Veneza não tem ruas (bem, não de asfalto ou terra...), mas existem trechos com calçamento e praças que permitem um passeio a pé. Um outro morador entra numa confeitaria para comprar o pão de cada dia. Na loja de quadros e molduras, o artesão esculpe a madeira para transformá-la em objeto de arte. Nos canais, o barco dos correios traz as cartas e encomendas que acabaram de chegar por navio. Em outro ponto, o mais famoso barco de frutas da cidade atrai os fregueses e os olhares dos turistas. É uma espécie de varejão como os existentes no Brasil, com a diferença fundamental de que flutua sobre a água.
E a vida segue em Veneza. Roupas para secar penduradas nas janelas de casas seculares, flores e plantas para cuidar, amigos para visitar. Talvez com esse intuito o marido estacionou seu barco em frente de casa para apanhar a esposa. Postos de combustíveis não há - eu não os vi. E não pense que são desnecessários numa cidade sem ruas porque movidas à força manual só mesmo as turísticas gôndolas. Barcos, estes precisam de combustível! E não são poucos os barcos a navegar pelos estreitos canais de Veneza. Se o Grande Canal chega a ter um certo congestionamento, nas vielas aquáticas o movimento às vezes é mais intenso do que se supõe, um vai-vem de turistas e venezianos que manda para longe qualquer possibilidade de tédio. Veneza é assim. Exibida para os turistas, que lotam suas praças, calçadas e canais. Reservada para os moradores, que vivem o cotidiano de qualquer cidade numa cidade única. E os que se dispuserem a desvendar os caminhos mais secretos deste lugar, passando por vielas escuras e frias, permitindo se perder pelo emaranhado de trilhas, irão descobrir que por trás de prédios que pararam no tempo, existe uma cidade vibrante que não deixa o tempo parar!




Crônicas da Itália – n° 2

A lua sobe tão rapidamente quanto a temperatura cai. Sinto um pouco de frio, mas resisto. Poucas vezes vi um lugar assim tão... fascinante. Atraente. Fascínio e atração são sentimentos que andam de mãos dadas por uma cidade apaixonante, nada mais adequado. E pensar que a Piazza Bra é só mais um ponto de atração em Verona. Ainda não vi imagem mais formosa que a do rio Ádige. Pisar o chão que outros pisaram há dois mil anos, então, há sensação mais louca?
No anoitecer da Piazza Bra, os pensamentos se amontoam e confundem. O lugar que preserva um dos mais significativos exemplares de uma arena romana também cede espaço em sua volta aos palácios della Gran Guardia e Barbieri. E logo ali, ao lado, vê-se a Porta Bra, o grande arco que serve de entrada triunfal para a praça de nome estranho, quase uma onomatopeia– Bra!
Na praça, onde o verde figura como coadjuvante da mágica e histórica arquitetura, jovens mães empurram carrinhos com seus bebês; pais brincam com seus filhos pequenos; senhores discutem os rumos da Itália sentados nas dezenas de banquinhos; turistas de toda parte – numa verdadeira babel - conversam nos restaurantes; famílias passam admirando a beleza do lugar. Parado ali, reparo na placa que informa as atrações de inverno e algo me soa familiar: “Dona Flor e i suoi due mariti”, o clássico “romanzo” de Jorge Amado.
As cores e as flores dão alegria ao lugar. Assim como o artista de rua. Fingindo-se de estátua, fazendo-se de “sombra”, atrai com suas brincadeiras infantis, inocentes, engraçadas a presença de crianças e adolescentes e os olhares de adultos tímidos. Há um pouco de Chaplin naquele homem, na sua ação muda, nos seus gestos surpreendentes. Definitivamente não há monotonia possível na Piazza Bra, ainda que caia o luar. Porque a lua simplesmente se soma ao cenário, às vezes até roubando a cena com sua luz brilhando alto, iluminando o chão. Não há canto para onde se olhe que a admiração não se manifeste.
A temperatura em queda vai dando sinais de que a hora de partir se aproxima. E justamente por isso, cresce o desejo de ficar um pouco mais, de olhar um pouco mais. Sempre mais na apaixonante Verona.


Em busca da (minha) história

Incluir Vicenza no roteiro de viagem pelo norte da Itália foi, confesso, uma certa teimosia. A cidade está longe dos principais destinos do país. Ainda assim, dispus-me a perder ao menos um dia naquele lugar. Fui atraído pela história. Pela minha história. Fui em busca das raízes. Das minhas raízes. Foi de lá que, em 1888, partiu no navio Independente rumo a Santos uma criança de dez anos chamada Marina Vialle, minha bisavó. Uma aventura rumo ao desconhecido, rumo a um sonho.
Sob uma perspectiva pessoal, é impossível não considerar aquele momento decisivo na história da minha família, na minha história. A mudança de continente representou também uma mudança de vida para aquela criança. Foi no Brasil que ela cresceu, encontrou um trabalho, um lar, um marido. Foi no Estado de São Paulo que ela formou sua família. Foi a Limeira que chegou esta história de origem distante, no espaço e no tempo.
Muita coisa deve ter mudado em Vicenza desde aquele longínquo 1888. Os italianos (e tantos outros imigrantes que aqui chegaram) assumiram os riscos de uma aventura desse porte porque viram nela a melhor possibilidade na luta por uma vida melhor. Deixar a pátria-mãe, ir para uma terra distante, de língua, clima e costumes estranhos, é um desafio gigantesco. Que a família Vialle e milhares de outras decidiram encarar.
Ao mesmo tempo, muita coisa da Vicenza de 2010 já devia estar lá 120 anos atrás. Há muito mais do que isso. A cidade - berço do trabalho de um dos mais renomados arquitetos do renascimento italiano, Andrea Palladio (1508-1580) – guarda um impressionante acervo de palácios. São mais de cem. Um claro indicativo da riqueza de Vicenza durante o Renascimento, quando decidiu se aliar à rica e poderosa Veneza.
O que teria acontecido 300 anos depois para que alguns de seus filhos a abandonassem? Seriam as consequências do duro processo de unificação da Itália, acentuado na segunda metade do século 19? A resposta ninguém sabe ao certo. Esta dúvida, aliás, atormentou-me (num sentido positivo) durante todo o tempo em que estive na cidade. Provocou sentimentos e emoções únicos.


Para muitos “oriundi”, caminhar hoje pelas ruas de pedras antigas de Vicenza é encontrar partes dessas duas histórias, a da cidade rica de Palladio e da cidade pobre dos emigrantes (os que a deixaram). Do ponto de vista sentimental, ao menos para mim, é a cidade pobre que me atrai. Do ponto de vista turístico, porém, os palácios é que chamam a atenção. E são tantos, em tão pouco espaço – no chamado centro histórico -, que fica difícil conhecer um a um.
Fotografá-los, então, é tarefa para profissionais em ruas tão estreitas, históricas, sombreadas, com angulosos raios de sol. Foram erguidos ao longo de quase três séculos, do 15 ao 17. Palazzo Thiene Bonin-Longare, Piovini, Barbaran, Thiene, Palazzo di Iseppo Porto, Trissino-Trento, Valmarana Braga, Chiericati (sede do Museu Cívico, patrimônio da humanidade)... Cada qual com suas peculiaridades, muitos deles com elementos clássicos da arquitetura paladiana.






Muitas também são as igrejas – como, aliás, em grande parte das cidades italianas. Igreja de S. Stefano, de S. Gaetano, de Santa Corona.



No centro de todo esse conjunto, a Piazza dei Signori com o Palazzo della Ragione. Sede da prefeitura, o “palazzo” tem como destaques as colunas projetadas por Palladio em 1549 e o telhado coberto de bronze que lembra um grande barco virado. Esculturas de deuses gregos e romanos, num branco reluzente e monumentalmente instaladas, apontam para o céu fortemente azul. Ao lado, imponente, a torre do século 12, com seus mais de 80 metros rumo ao divino. Na mesma “piazza”, a Loggia del Capitaniato – também obra de Palladio, datada de 1571 – abriga os legisladores locais.



Razão e emoção lado a lado, passado e presente dividindo o mesmo espaço. E ele, Palladio, logo ali ao lado, observando o vai-vem de moradores e turistas, uns e outros fazendo compras na feirinha do século 21, passeando por uma ou outra loja do século 19.
E quando a arquitetura falta, a natureza se apresenta. A ponte San Michele, de 1620, forma sobre o rio Retrone um verdadeiro cartão postal. Imagem esplendidamente bucólica numa cidade do renascimento. O curso da vida que nunca parou em Vicenza. Ainda que muitos de seus prédios aparentem ter parado no tempo. Ainda que muitos de seus filhos tenham escolhido ver o tempo passar em terras distantes.
Um dia, porém, alguém há de voltar. Ainda que isso leve algum tempo.

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