Ah, Veneza...!

“Algumas cidades, como caixas embrulhadas sob a árvore de Natal, escondem presentes inesperados, delícias secretas. Algumas cidades permanecerão para sempre embrulhadas, caixas contendo enigmas que nunca serão solucionados, nem mesmo para ser vistos por visitantes em férias, ou pelo mais inquisitivo e persistente viajante. Para conhecer essas cidades, desembrulhá-las, é preciso nascer lá. Veneza é assim.”
Truman Capote, “Ensaios”, p. 506.


Às vezes é difícil falar de uma cidade. Elas são corpos vivos, complexos, carregam em suas veias o sangue dos seus moradores, as marcas de sua história (em alguns casos milenar, como Roma).
Há lugares que têm tanto a oferecer que descrevê-los se torna uma tarefa inglória. Talvez fosse melhor romanceá-los, dando-lhes personagens – reais ou fictícios. Assim, a cidade facilmente viraria o cenário de uma história.
No caso de Veneza, porém, isto não seria original. Há tempos a cidade é cenário de enredos na literatura e no cinema. O que poderia, então, soar como original? Contar a minha história com Veneza. Uma história que começou bem antes de pisar naquele lugar. Antes de conhecê-la, fiz questão de ler “Mil dias em Veneza”, de Marlena de Blasi. A autora, jornalista, conta o seu envolvimento emotivo com a cidade por meio do romance com um veneziano. Página após página, os leitores passeiam pelos canais, pelo Lido, pela feira de peixes e frutas no Rialto...
O livro foi o despertar de um encantamento. Confesso (e isto é uma blasfêmia!) que Veneza era apenas mais um ponto no roteiro pelo norte da Itália. Não que eu não quisesse conhecer o lugar. Ao contrário: adoro conhecer cidades. Mas não nutria o sonho de muitos (principalmente dos apaixonados) de (vi)ver Veneza. E assim fui. Despretensiosamente, quase sem expectativas, peguei o trem partido de Verona. Conforme o comboio se aproximava da famosa estação de Santa Lucia, surgiu na paisagem um elemento fundamental na vida veneziana: a água. Por todos os lados, cercando o trilho suspenso que liga a parte continental à insular.
Ver aquele tom esverdeado foi como um arrebatamento. De súbito, fui tomado por um entusiasmo que eu mesmo desconhecia. Entusiasmo que só cresceu quando deixei a estação e vi aquilo tudo. Aquilo o quê? Veneza! A cidade é um verdadeiro esplendor. Uma arquitetura espetacular, de diversos estilos, que ajuda a contar a sua história. Um sem número de igrejas, cada qual com seus tesouros, que ajuda a reforçar a sua fé. Uma coleção de palácios quase todos velhos – o que faz toda a diferença. O charme de Veneza reside justamente no fato de ter sido preservada ao longo dos séculos. Isto significa que os mesmos cenários presentes em diversos quadros no Palácio Ducale estão logo ali, praticamente intactos.
Veneza é, também, estimulante. Não há ponto para o qual se olhe que não se sinta algo diferente. Uma vontade de navegar, descobrir, conquistar. Terras, sonhos, amores. Um desejo crescente de eternizar um instante, fazer o tempo parar. Impossível não lembrar dos mercadores que deram fama à cidade. Homens visionários, expansionistas, que fizeram a riqueza daquele pedaço de terra encravado num canto do mar Adriático, o golfo de Veneza. Os mercadores de Veneza.
Por aquelas águas, hoje navegam casais eternamente apaixonados (porque lá qualquer momento é eterno). Uma cena insólita: na gôndola, os recém-casados posam para o álbum de fotos. Como pano de fundo, o Casino di Veneza. No Rialto, uma outra noiva, com o tradicional vestido branco, sobe a escadaria da mais famosa das pontes venezianas em seu momento feliz e único em meio a milhares de turistas.
Não sei como pude ignorar aquele lugar. Não sei porque subjuguei seu poder. Na Catedral de São Marcos, com seus traços bizantinos e onde repousa o apóstolo, pedi perdão. Por todas as vezes que pequei com atos e palavras, pensamentos e omissões. Pequei contra Veneza, contra a sua beleza, contra o seu poder, contra a sua luxúria, contra a sua história. Um quase-crime contra a humanidade, um réu a caminho de Haia.
É definitivamente impossível não se envolver com Veneza (por mais que muitos a classifiquem simplesmente como fétida). É definitivamente impossível não se apaixonar por Veneza (por mais que seu romantismo soe meio blasé e falso).
Veneza une Oriente e Ocidente, passado e futuro, sonho e realidade. Veneza repele e acolhe, é humilde e exibida, poderosa e frágil. Incrivelmente frágil (até dizem que ela vai afundar qualquer hora...). Frágeis somos nós perante Veneza. Frágeis e fugazes, como todos que por lá passam. Em Veneza, somos apenas mais um na multidão. Ela é a protagonista; nós, figurantes. No céu de Veneza, uma única estrela brilha: ela própria. O resto, bem..., é só o resto.


A bela Florença

Que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental. O princípio declamado pelo poeta poucas vezes se aplicou tão bem a um lugar quanto a Florença, a encantadora capital da encantadora Toscana. “E que maravilhas tem Florença!”
Há quem diga que a cidade é um pouco descolorida (e isto é meia verdade), mas como reclamar de um lugar considerado o berço do Renascimento? É verdade que as fachadas dos prédios costumam se exibir como “autoritárias superfícies”, nas palavras de McCarthy, mas também é fato que as milhares de obras de arte espalhadas pela cidade dão o colorido necessário a um imenso museu chamado Florença. Aliás, não seriam as fachadas cinzentas e amarronzadas ideais para não ofuscar o brilho das obras?
Obviamente, em Florença – como em qualquer outro lugar -, a visão do visitante depende de seu referencial. Provocativamente, poderia dizer aos que amam a vida e o belo que a cidade é a sua mais acabada expressão; já aos incautos e míopes, sim, Florença pode ser só mais um lugar (cinzento e sem vibração). E perguntarão: o que é o belo, afinal? Concordo que no decorrer da história a definição de beleza mudou conforme os padrões da época. Não é, porém, a definição científica, sociológica ou cultural a que me refiro. A resposta pode ser facilmente encontrada no “Davi”, de Michelangelo. Ou nas portas do batistério, que forma com a Catedral de Santa Maria del Fiore e o Campanário de Giotto um dos mais interessantes conjuntos arquitetônicos da Europa.
Não foi à toa que David Leavitt - em seu livro “Florença, um caso delicado” - exclamou: “E que maravilhas tem Florença! Incrivelmente, ela abriga quase um quinto dos tesouros de arte do mundo. Um quinto! Um itinerário completo pela cidade inclui arquitetura, escultura e pintura, os grandes museus (Bargello e Uffizi), mas também os pequenos (Stibbert e Horne), edifícios públicos, palácios e inúmeras igrejas, Boticellis, Leonardos, Michelangelos, Giottos, Masaccios, Fra Angelicos, Gozzolis, Pontormos e Donatellos... E mesmo que você consiga ver tudo isso, mesmo que fique em Florença um ano, ou cinco, sempre haverá algo que você terá deixado escapar, alguma remota igreja conhecida apenas dos conoscenti de conoscing, sobre a qual você será devidamente informado só na véspera de sua partida.” (p. 30)
Sim, Florença é fundamental. Para os amantes da arte, para os amantes da gastronomia (é a capital da Toscana!), para os simplesmente amantes. Os ingleses já se apaixonaram por ela há mais de um século. Outros povos a disputaram ao longo da história – e ela resistiu e venceu, soberana. Ela deu a luz que o Ocidente necessitava em tempos de trevas. Ela deu ao mundo os mais belos trabalhos em telas, mármore e outras pedras. Mãos habilidosas passaram por aquelas ruas.
E para quem diz que Florença não passa de um grande museu, até nisso a cidade inovou: democratizou o acesso à arte. Basta seguir: ali, naquela esquina; lá, um pouco à frente; logo depois do cruzamento...
Hoje, a cidade transpira a elegância que um dia inspirou. Suas ruas trazem esculpidas as marcas da sua história. Em cada ornamento, em cada detalhe, nas Virgens Maria que enfeitam as fachadas de muitos imóveis, em cada suporte de ferro no qual tochas eram colocadas para iluminar o local antes da eletricidade, em cada placa que indica um morador ou uma passagem ilustre.
E sequer falei do Arno, que com suas águas amarronzadas divide a cidade. E da charmosa piazzale Michelangelo, que a observa sublime, com suas luzes e cores. E das flores e jardins, que enfeitam vasos e montes. E dos cheiros e sabores, que atraem e sustentam. E dos ruídos e amores, que divertem e apaixonam. E do ar da Toscana, que inspira.
Então, que me perdoem as feias porque, afinal, beleza é fundamental!

A obsessão celestial de NY

Olhar para o alto é uma necessidade numa cidade famosa por seus arranha-céus como Nova York. Lá estão alguns dos maiores prédios do mundo (antes do “boom” do petróleo erguer construções até então impensáveis nos países árabes) e dos mais marcantes (pelo menos um deles deixou a paisagem há dez anos, fruto da insanidade de alguns). Só em Nova York pode-se ver o Chrysler Building, o Empire State Building e o Flatiron Building, não tão alto, mas tão marcante quanto os outros.
Com estilos arquitetônicos diferenciados, são construções que marcaram época. Até por isso, estes prédios - como bem descreveu a jornalista Giuliana Morrone em uma de suas “Crônicas de NY”, exibidas semanalmente no “Jornal Hoje”, da TV Globo - ajudam a contar a história da cidade.
Alguns edifícios chamam mais atenção por suas histórias. É o caso do Dakota. Localizado em área nobre, em frente ao Central Park, ele ganhou mais notoriedade por causa de um casal de moradores e de um crime ligado a eles. O Dakota foi durante anos a moradia de John Lennon e Yoko Ono. Foi lá, em frente ao prédio, que o ex-beatle foi assassinado.
Há construções que se destacam por sua arquitetura. Um dos mais notórios neste quesito é o Flatiron. Localizado na esquina da Broadway com a Quinta Avenida e a Rua 23, há mais de cem anos ele domina a paisagem da região com seu formato que lembra um ferro de passar roupas. É impossível não notá-lo, sua forma causa estranheza. E graça ao mesmo tempo. Turistas e curiosos em geral podem fazer um tour guiado pelo prédio para conhecer mais de perto suas histórias e sua arquitetura. Junto com os relógios públicos dourados e as floreiras da pracinha em frente, o Flatiron leva a uma romântica volta ao passado.
Vizinho dali, ao lado do Madison Square Park, fica o The Metropolitan Life North Building, mais conhecido como Eleven Madison (devido a um famoso restaurante existente no local). Forma com a Met Life Tower um complexo de destaque na área. Em estilo art decó, também foi construído no início do século 20. Na fachada, um exuberante relógio; no topo, uma coleção de janelinhas e uma reluzente cobertura dourada.


Erguido entre 1930 e 31, o Chrysler Building chegou a ser – bem como o Met Life Tower entre 1910 e 1913 – o prédio mais alto do mundo. A fama durou só um ano. Contudo, a sua arquitetura robótica (esta é uma expressão minha, não procure definições conceituais) permanece lá, intocada. A dureza aparente em razão do revestimento (que parece aço) dos arcos superiores se soma aos gárgulas modernos da Chrysler no topo para configurar ao edifício uma aura de poder que reforça a sua marca (e vice-versa).
Olhando do alto, o Chrysler Building  parece uma grande injeção, com sua agulha pontiaguda ameaçadora. Olhando mais distante, sua imponência torna-se ainda mais reveladora.


Localizado no famoso distrito financeiro de Nova York, o Trump Building (ou 40 Wall Street, seu endereço) também está na lista dos mais altos do mundo. A data de sua conclusão – 1930 - confirma o furor arquitetônico rumo aos céus das primeiras décadas do século passado na cidade. Curiosamente, a expansão vertical de Nova York teve um forte impulso no pós-Grande Depressão (a quebra da Bolsa de Valores local, em 1929, é tida como a maior crise econômico-financeira dos últimos cem anos).
Na paisagem de concreto nova-iorquina, o Trump Building - também chamado de Bank of Manhattan Trust Building - se destaca pelos telhados marcadamente verdes. Esta característica, aliás, confere-lhe um pouco de personalidade diante de uma fachada bege completamente sem vida. Além da cor, o telhado do topo exibe uma arquitetura rebuscada, com curiosas aberturas. Ao redor, pequenas torres lembram catedrais góticas.
Mais recente, inaugurado em 1983, o Trump Tower é dos prédios mais curiosos da cidade. Sua arquitetura moderna contrasta com o estilo mais rebuscado e clássico (quase vitoriano) dos arranha-céus do início do século 20. Todo envidraçado, ele reflete a selva de pedra nova-iorquina. Parece, assim, mais democrático ao servir de espelho para seus vizinhos e supostos “adversários” numa cidade onde a altura é alvo de disputa e sinônimo de poder.
A modernidade do Trump Tower, porém, não se encerra em sua arquitetura. Além da fachada recortada como se fosse um bolo faltando pedaço, ele traz logo acima de sua entrada um pequeno bosque. Um toque ambiental, ecológico e visionário nos anos 80 de sua construção. A simbologia de uma floresta numa cidade de concreto, num mundo que se pretende cada vez mais verde. Um jardim simétrico, um charme irresistível, a vida se manifestando num prédio escuro (ou obscuro?).


Na saga nova-iorquina rumo aos céus, o Empire State é, talvez, o símbolo maior. Desde que as Torres Gêmeas deixaram um vazio no chamado “skyline” de NY, o Empire voltou a exercer o domínio que teve durante anos. Com céu azul e dia claro, ele se destaca com seu topo pontiagudo.
Se o clima estiver nublado, com céu encoberto, o prédio será tomado pelas nuvens baixas (ou será ele demasiado alto?). À noite, assumirá cores variadas, conforme a ocasião. No 4 de Julho (Dia da Independência dos Estados Unidos) e no 11 de Setembro (dia dos ataques terroristas contra a cidade), por exemplo, predominam o azul, vermelho e branco da bandeira norte-americana. Patriótico assim, ele até se confunde com a alma da cidade - e da nação.




E se o Empire State embeleza a paisagem nova-iorquina, observar a cidade lá do alto é ver quão bela é esta paisagem. Os rios que correm como sangue nas veias de Manhattan, a imensidão verde (dependendo da época do ano) do Central Park, o tsunami de concreto dos telhados dos prédios que lembram a estrutura de uma placa de computador...

Peregrinar pelas ruas de uma cidade só para observar os prédios pode soar como loucura ou perda de tempo. Não em Nova York. Lá, os prédios falam. Por eles é possível identificar épocas, estilos e regiões (e até personalidade, não é Donald Trump?). O vermelho alaranjado do Dumbo, a região abaixo da Manhattan Bridge; as famosas escadinhas externas no West Village; as portas charmosas com suas pequenas escadarias de acesso em Greenwich; a sede da prefeitura.

Definitivamente, o “skyline” de Nova York não seria o mesmo se não fossem os arranha-céus. A vista talvez não valesse tanto a pena se não fosse uma cidade que há mais de um século cresce para o alto. Sem sua obsessão celestial, Nova York não seria Nova York. E este texto não teria chegado até aqui...


PS: para ver a crônica da jornalista Giuliana Morrone, citada nesta postagem, é só clicar aqui.

A vida na Calle Alicante

Antes de sair sozinho pela primeira vez naquele lugar desconhecido, fui alertado: “repare nos para-choques, todos são ralados ou amassados. Os espanhóis dirigem muito mal, estacionam em qualquer lugar, de qualquer jeito”. Também fui avisado de que eles, os locais, têm alma beligerante. Assim, precavido, parti rumo às descobertas.
Os veículos me atraíram como ímãs, parados às vezes num completo desleixo. Não se guarda distância de um para outro. Também costumam colar nas guias. Um deles subiu na calçada e encostou numa árvore. Na lataria, sinais de paradas semelhantes. De fato, os cantos dos para-choques dos carros, ao menos daqueles de classe média, parecem ter saído de fábrica com as marcas do trânsito tamanha a quantidade de riscos e batidas. “Devem custar pouco os carros por lá (ou devem ganhar muito bem os espanhóis)”, pensei – o que hoje não me parece verdade.
Carros mal-cuidados, porém, eram apenas uma das marcas do lugar. A vida lá, uma área de periferia (embora não com as conotações que se tem no Brasil), onde vivem espanhóis típicos, era mais ou menos assim: o movimento começa relativamente tarde, por volta das 10h. Abrem-se as lojas e lá estão eles, tomando reforçados cafés, geralmente com tortillas (um tipo de omelete).
Nas ruas, senhoras bem agasalhadas levam os sacos de lixo até as caçambas. Não há lixeiras individuais, como no Brasil. À noite, o caminhão passa recolhendo o conteúdo das grandes caçambas, amontoadas em duplas ou trios a cada meio quarteirão. Também não há garagem para os carros, que pernoitam ali mesmo, na rua, em frente aos apartamentos – o que acentua a aparência de descuido, já que o veículo enfrenta sol, chuva, orvalho, neve...

A vida para por volta das 14h. É o almoço seguido da sesta. Nessa hora, subir os degraus do prédio era quase uma tortura. O aroma do azeite espanhol que temperava as refeições apresentava-se como um perfume. Não sei bem a razão, mas o cheiro da comida me deixava sempre com a impressão de que o prato do dia era carne de porco – ou de carneiro, muito apreciada naqueles lados. Também comem muito peixe e frutos do mar, mas estes nunca pareciam se manifestar ao meu olfato.
A partir de então, tudo era silêncio. As lojas fechadas eram o símbolo máximo dessa instituição espanhola, o sagrado descanso pós-almoço. Claro que no centro da capital a vida fervilhava, mas nenhuma capital é o retrato acabado de um país. Andar pelas ruas praticamente desertas entre 14 e 17h prenunciava uma quase melancolia, acentuada pelo clima frio e às vezes o céu cinzento.
Até que o fim da tarde chegava e, com ele, o movimento de volta. Lá estavam os espanhóis novamente tomando café, comendo porras (isto mesmo!) e tortillas. Dali a pouco viriam as tapas e cervejas. Tão estranho como andar por uma cidade fantasma em plena tarde é ver pessoas trabalhando normalmente num escritório às nove da noite. Ah, as calçadas costumam ter sujeira, notadamente bitucas de cigarro e papéis, além de folhas do outono-inverno.

No quarteirão e meio que separava o apartamento da estação de metrô Juan de la Cierva, na linha do Metrosur (que circunda a região metropolitana de Madrid), havia minimercado, quitanda, farmácia, uma mercearia comandada por chineses e com preços um tanto altos, banca de jornais, entre outros pequenos comércios. Todos os dias passava por eles e me divertia observando o movimento e os preços.
No minimercado, chamava minha atenção o açougue (como eram diferentes as carnes!). Na farmácia, indicada pela típica cruz luminosa verde, conferia num letreiro a hora e a temperatura – que geralmente oscilava entre 5 e 8ºC. Nossa vizinha, a quitanda conferia à região um clima interiorano em plena periferia de uma das maiores cidades do mundo. Observava os vegetais e frutas brilhosos, mas o que me despertava a curiosidade mesmo eram as nomenclaturas dos produtos em espanhol. Sempre batia o olho no mesmo cartaz que anunciava o preço de “grelos”. Fui embora sem saber do que se tratava o sugestivo (para nós, brasileiros) nome.
Na banca, conferia os anúncios da loteria. O destaque naquele período era o chamado “El Gordo”, a grande bolada de Natal, que somava quase cinco bilhões de reais. Criada em 1763 pelo rei Carlos 3º, a loteria é uma tradição espanhola. O concurso de Natal (que acontece dias antes) foi instituído em 1812 e atrai a atenção do povo. O país para na frente da TV - em casa e nos bares - para acompanhar o sorteio. “Avisa lá no Brasil que, se eu ganhar, vou comprar a Espanha!”, costumava brincar.
Outra tradição local nessa época é a mensagem de Natal do rei. Transmitida pela TV, é o momento em que Juan Carlos 1º fala com seus súditos. A celebração do Natal é simples, sem troca de presentes. Ela ocorre no Dia de los Reyes, em 6 de janeiro, quando acontecem desfiles dos reis magos pelas cidades, com direito a camelo, carros alegóricos, personagens infantis e distribuição de balas para as crianças – que vibram gritando “Los Reyes! Los Reyes!”, o ponto alto da parada.
Em Madrid, o desfile inclui uma chegada apoteótica, quando o prefeito entrega simbolicamente a chave da capital para os três reis da tradição cristã. O evento é acompanhado por milhares de pessoas nas ruas e transmitido ao vivo pela TV. Eu, claro, estava lá.
E assim era a vida nos dias que passei no apartamento da Calle Alicante, 11-B, em Getafe, na periferia de Madrid.


PS: para quem não sabe, porras são como os churros brasileiros, mas sem recheio. Já grelo, pelo que pesquisei posteriormente na Internet, é a folha de nabo. 

Em tempo: "calle" é rua em espanhol. A Calle Alicante está na primeira foto desta postagem.

Uma cidade encantadora

Nosso destino era uma pequena cidade no interior da Alemanha, perto da região conhecida como Floresta Negra, no estado de Baden-Württemberg. Lá, estava à nossa espera um médico cuja família tem sua história ligada a Limeira, mais precisamente à Fazenda Ibicaba (hoje situada em Cordeirópolis). Para quem não sabe, a fazenda foi o berço da imigração europeia de cunho particular por meio do sistema de parceria, implantado em meados do século 19 pelo senador Nicolau Pereira de Campos Vergueiro.
Schwäbisch Hall, é este o nome do lugar, foi fundada no século 12 - embora existam vestígios que remontam a 500 anos a.C. A cidade ficou conhecida por sediar a maior salina do país em meados do século 17 (o sal, o “ouro branco” dos tempos medievais, nas palavras do prefeito Hermann-Josef Pelgrim, está ligado à origem do lugar, ainda nos tempos celtas). A localidade também ficou conhecida por cunhar uma moeda de prata chamada “heller” – exemplares podem ser comprados como souvenir.
A principal atração de Schwäbisch Hall é a Old City, ou centro antigo, onde se destaca a Marktplatz. Lá estão a Igreja de São Miguel (Kirche St. Michael) e a prefeitura (Rathaus), ambas com arquitetura e história fabulosas. Uma de frente com a outra, como dois amantes parados no tempo. A igreja, em estilo gótico, é imponente. Fica na parte superior da praça e é acessível por uma longa e larga escadaria. De lá, a prefeitura fica pequenina, mas não menos charmosa. Com uma torre e um relógio, é dos prédios mais bonitos da cidade.
Na cinzenta fachada da igreja, consagrada no século 12 pelo bispo Gebhard von Würzburg, destacam-se também uma torre e um relógio. Em seu interior silencioso, ossos humanos podem ser vistos no subsolo por meio de um acrílico. Uma imagem macabra (acentuada pelo clima sombrio característico das igrejas góticas) e histórica.
Ainda na praça, experimente tomar um café numa das mesinhas das construções laterais. Uma sugestão é o elegante Cafe am Markt, logo acima da fonte. Luminárias, gradis rebuscados e floreiras coloridas misturam-se à exuberante arquitetura e dão o tom ao lugar. Simplesmente curta o momento e deixe o tempo passar. À noite, após o jantar, caminhe de modo errante pelas ruas - iluminada, a Marktplatz tinge-se de dourado. Sinta o clima de uma cidade que tem muita história para contar!





Passear pelas margens do rio Kocher, apreciando as construções medievais ao redor, é bucólico e mágico. Refletidas nas águas escuras do rio, as casinhas - marcadamente germânicas, algumas com flores nas janelas - parecem cenário de embalagem de chocolate. Se puder, faça esse passeio bem cedo, quando a cidade ainda não despertou totalmente. Se estiver no outono ou inverno, você vai se deparar com uma paisagem ainda mais fantástica e romântica, acrescida de névoa, orvalho e – dependendo da temperatura – a branca neve.
Símbolo da importância das artes no lugar, Schwäbisch Hall abriga também uma réplica do Globe Theatre, o teatro inglês que ficou famoso por sediar as peças de William Shakespeare. Contudo, a principal diversão na cidade é tentar pronunciar o seu nome. Experimente: pergunte a um morador como se fala e tente imitar. “Xuabixirrallll”, “Xueibixirrallll” (assim, com muitos “l”, soltando a língua). Acredite: você tentará uma, duas, três vezes. E ainda assim vai lamentar não ter atingido um nível adequado de pronúncia.
Seja como for (ou como você falar), Schwäbisch Hall vale uma visita. Mesmo longe dos roteiros tradicionais na Alemanha, a cidade é uma daquelas joias que surgem em nosso caminho sem avisar. Joias que encantam e nos envolvem para sempre!




PS: para saber mais sobre a história da imigração europeia de cunho particular e, mais especificamente, a ligação do médico de Schwäbisch Hall com Limeira, recomendo a leitura de “Recordações de Infância de Carlota Schmidt no Ibicaba”, do pesquisador José Eduardo Heflinger Júnior, o Toco.

* As fotos pessoais foram tiradas em máquinas tradicionais (não digitais), daí a baixa qualidade das imagens. As demais foram retiradas do site oficial da cidade. 

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