A cidade das torres

Li em mais de uma ocasião que as torres serviam como importante instrumento de defesa dos senhores feudais e aristocratas, principalmente durante a Idade Média. Em razão da altura, garantiam ampla visão da área (o que permitia antever a aproximação de inimigos) e serviam de ponto estratégico para eventuais ataques (geralmente com flechas). Muitas delas, num período mais remoto, costumavam ser mais fechadas, tendo as famosas seteiras.
Por ignorância, era esta a minha visão das torres dos palácios e castelos (sem contar as que ficam junto a igrejas, campanários e as que abrigam relógios). Pois a pesquisadora Ina Caro, em seu livro “Paris sobre Trilhos”, introduziu uma outra visão, óbvia (daí a importância da leitura): “Em geral, torres são símbolo de independência e poder” (p. 260).
Quando li o trecho, de imediato me veio à mente a visão de San Gimignano, vilarejo encravado no alto (a 334 metros mais exatamente) de um monte em meio ao belíssimo cenário da Toscana, na Itália. O lugar é conhecido justamente, e entre outras coisas, por suas torres – há referências a 13, 14 e 15 delas, mas de destaque mesmo são seis. Já foram mais de setenta (72 dizem). E é aí que entra a definição apresentada por Ina Caro: para que, afinal, tantas torres num vilarejo que até hoje abriga poucas centenas de pessoas? Elementar, caro: para mostrar poder!
A descrição da cidade no site oficial deixa claro esta vocação ao dizer que San Gimignano “domina o vale Elsa com suas torres”. Não haveria verbo mais apropriado – e neste ponto lembro das aulas que tive na faculdade e ministrei, já como docente, que tratavam dos verbos que “falam” (ou, na verdade, transmitem ação – quando “dizer é fazer”). É isto: as torres da pequena e histórica cidade toscana falam. Afinal, dominar é... dominar e ponto.

















A história da cidade remonta ao período Helenístico, por volta de 200-300 anos a.C., quando era uma vila etrusca. Como cidade, ela surgiu no século 10, emprestando o nome do bispo de Modena, San Gimignano – a quem atribuem ter salvado a vila de invasões bárbaras. O lugarejo cresceu em razão da proximidade da via Francigena, uma importante rota comercial durante a Idade Média, tornando-se um município independente em 1199.
Em 1348, a população local foi quase dizimada pela peste negra, o que fez a cidade entrar em crise, tornando-se submissa à poderosa Florença cinco anos depois. Nos séculos seguintes, San Gimignano permaneceu isolada, o que foi decisivo para preservar seu charme, sua beleza e sua história - que lhe garantiram séculos depois sua “redescoberta” como ponto importante da região.
A construção das torres se deu justamente entre o período de ascensão e declínio da cidade, ou seja, entre os séculos 11 e 13. Hoje, é possível visitar a Grande Torre (Torre Grossa ou Podestà), de 54 metros. Erguida em 1311, fica anexa ao museu cívico local (o Palazzo del Popolo), na praça principal, ao lado da modesta catedral (na verdade uma colegiada, já que a cidade não possui bispo).
A igreja – dedicada a santa Maria Assunta - exibe uma arquitetura simples, que mistura rudeza e robustez em sua fachada de pedra aparentemente bruta, datada de 1239. Ela não possui uma porta principal e sim duas pequenas portas para onde converge a escadaria, o que causa certa estranheza (tem-se a impressão de que falta algo na fachada). Não há qualquer traço decorativo, a não ser dois pequenos arcos sobre as portas, acima dos quais ficam duas pequenas janelas. Há ainda um pequeno vitral arredondado, acima dele um arco em tijolos e uma pequena cruz.
Chama mesmo a atenção o chão da praça, a Piazza del Duomo, com tijolos vermelhos colocados de tal maneira que formam pequenas setas e aparentam estar em movimento.



Na cidade, destacam-se também as torres gêmeas “degli Ardinghelli” (esqueça, não guardam nenhuma lembrança com as do World Trade Center) e a torre de Diavolo. Passear por todas elas, ainda que não se possa adentrá-las, é como fazer uma viagem no tempo. Observar seus detalhes (ou a ausência deles na maior parte dos casos), imaginar qual finalidade tiveram e como sobreviveram ao longo dos séculos é um delicioso exercício em favor da história – por mais que não se chegue a conclusão alguma ou que a eventual conclusão esteja completamente equivocada. San Gimignano já terá cumprido seu papel, qual seja, o de estimular os pensamentos e sonhos. Porque vislumbrar a imensidão da paisagem toscana do alto do monte que sustenta a cidade e sentir a força emanada pelas ruelas e becos que resistiram ao tempo leva-nos forçosamente a pensar e a sonhar.
Chegar até San Gimignano não é tão simples. Não há linha férrea. Ônibus não entram. Para ir de carro, é preciso conhecer bem a região. Estando lá, porém, inevitavelmente será necessário cruzar a porta San Giovanni, uma espécie de mural em pedra de onde parte uma via ascendente que leva diretamente - por entre lojinhas de artesanato e produtos alimentícios típicos da toscana, como salames, vinhos e azeites – à piazza della Cisterna. Uma praça que, por falta de originalidade, ganhou o nome da cisterna ali existente e que durante séculos serviu como fonte de água para o vilarejo.
Hoje, a cisterna é ponto de atração para os milhares de turistas que todos os dias vão até San Gimignano. Ela é circundada por construções típicas de uma vila medieval, com fachadas em tijolos ou pedra bruta (eventualmente tomadas por plantas e pequenos arbustos) que pouco se diferenciam umas das outras, raramente ornamentadas (embora se veja aqui e acolá alguma tentativa de sofisticação, como arcadas feitas em tijolos que lembram o estilo mourisco).












Pelo que se vê, não são apenas as torres que fazem a fama de San Gimignano. Qualquer pequena cidade encravada no alto de um monte na Toscana por si só já mereceria todos os elogios – e uma visita, naturalmente. Saber que esta pequena cidade é um dos melhores exemplos da vida na Idade Média, preservada em sua arquitetura e em tudo o que esta arte revela faz do lugar um destino obrigatório. E aí, está esperando o quê?


Em tempo: San Gimignano é a cidade natal de santa Fina. É possível visitar a pequena e modesta casa onde ela viveu, numa das vielas secundárias do vilarejo. Trata-se de uma jovem - filha de Cambio e Imperiera Ciardi - que morreu aos 15 anos de idade, em 1253, passando em pouco tempo a ser venerada como santa na região (ela nunca foi canonizada oficialmente pela Igreja Católica).
Na cidade, fica também o estabelecimento que faz o "melhor sorvete do mundo". Trata-se da Pluripremiata Gelateria, vencedora dos concursos de 2006-7 e 2008-9 do Gelato World Champion. Eis mais uma razão para conhecer o lugar.

Os 50 tons de Boston

Boston é uma cidade cinzenta. E vermelha. E verde. E azul. E amarela... Localizada no nordeste dos Estados Unidos (portanto, bem lá no alto, no frio), a capital do estado de Massachussetts costuma ter invernos rigorosos. E invernos rigorosos costumam ser cinzentos e conduzirem a uma certa melancolia. Uma colega que vive lá há alguns anos atesta isto.
Banhada pelas águas escuras do oceano Atlântico, Boston tem na sua região portuária uma confluência perfeita de cores quando o céu está invernal – ou seja, cinzento. O tom de algodão levemente chamuscado do céu encontra-se no horizonte com o mar escuro, berço de dezenas de veleiros branquinhos que desfilam calmamente por águas tranquilas. Ali, o conjunto de prédios - sempre um belo “skyline” à beira-mar - confere contornos modernos a uma cidade antiga, fundada pelos ingleses em meados do século 17.
Por mais que a paisagem convide à introspecção, a presença humana na área ao redor, próximaao agitadíssimo Quincy Market, impede a chegada de resquícios de tristeza. Aos poucos, você começa a ver naquele mar escuro encontrando com aquele céu cinzento toques impressionistas capazes de transformar qualquer possibilidade de melancolia em paz. Olhando com atenção, é possível enxergar até suaves matizes de azul no céu.








A alegria humana com a paz transmitida pela natureza dão a essa área de Boston uma vibração diferente, típica de cidades que têm algo a dizer e a mostrar. E a capital de Massachussetts tem muito a revelar. Olhe novamente para o céu, azul brilhante. Repare como ele combina com o verde das árvores e o vermelho característico dos prédios de tijolos que emolduram a cidade, tais quais os tijolinhos daquele brinquedo de infância. Junte muitos deles e verá Boston.
Do alto, a mistura de cores torna-se ainda mais marcante na medida em que cada uma (o vermelho dos tijolos, o verde das árvores, o azul do céu) vira uma massa uniforme. Mais uma vez, não é difícil enxergar nisso tudo tons impressionistas.




No trecho em que a urbanidade é cortada transversalmente pelo rio, sente-se facilmente a manifestação da natureza – que, acrescentada pelos pequenos barcos e veleiros, ou seja, pela presença do homem, dá à noção de vida um novo sentido.



E Boston é assim: em cada fachada robusta, dura, escura, pedra sobre pedra, você verá um toque da natureza, seja no brilho do sol reluzente refletindo no vidro do prédio ou no jardim florido. Em cada canto silencioso, frio, solitário, você ouvirá um som, ruído de vozes ou do espírito que insiste em se manifestar.







E se as cores vistas até então não tiverem sido suficientes, é chegada a hora de conhecer o Public Garden. Encravado no coração da cidade, ele é um alento aos olhos e à alma. Na primavera-verão, transborda alegria com os muitos canteiros de tulipas de todas as cores – lilás, amarela, vermelha, laranja, mescladas... Simplesmente tulipas. Colorindo o gramado esverdeado, levando às árvores gigantes que circundam o parque e margeiam o lago, onde famílias se divertem alegremente nos passeios de pedalinho; patos e gansos nadam de um lado a outro; crianças brincam ao som do velho professor e seu instrumento colorido e maluco e ruidoso; casais trocam paixões deitados no chão, mães fazem piqueniques com os filhos e todos correm atrás dos esquilos, que correm atrás das migalhas deixadas pelas pessoas e dos frutos que caem das árvores. Tudo isto num único quadrilátero entre a Boylston, a Arlington, a Beacon e a Charles Street.















E assim o sol se põe no ponto mais vibrante de Boston, onde definitivamente a natureza encontra o homem e o convida para um banquete, uma festa, um momento de descanso que seja. Ali, crianças, jovens e adultos de todos os gêneros, cores e amores saboreiam – enquanto observam a paisagem ao redor, observados pelos prédios antigos e modernos – a delícia que é a vida. E se deleitam vendo o tempo passar, ou parar. Porque Boston é capaz disto: transformar melancolia em paz; tristeza em alegria; opacidade em cores.





PS: naturalmente, o título desta postagem tem uma leve inspiração no título de um livro que está fazendo bastante sucesso neste final de 2012 ("Cinquenta tons de cinza"). A inspiração, frise-se, não guarda nenhuma relação com o conteúdo do referido livro.

* As fotos são minhas e de Carlos Giannoni de Araujo

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