O domo de Florença

No ano de 1296, ao lançarem a pedra fundamental da Igreja de Santa Maria del Fiore – a Catedral de Florença -, os governantes da cidade italiana iniciavam uma empreitada épica que se estenderia por quase 600 anos. Tão grandioso que parece estabelecer uma conexão entre o casario florentino e o céu, o edifício em questão só seria concluído no século XIX. (...) A dificuldade mais monumental, contudo, dizia respeito aos desafios técnicos do projeto. Nenhum detalhe tirava mais o sono dos patronos da cidade – então mais próspera e populosa que Roma e Londres – do que a construção da cúpula da igreja. Com 45,5 metros de diâmetro e uma silhueta alongada que elevaria Santa Maria del Fiore à altura final de 114,5 metros, equivalente à de um prédio de mais de 30 andares, ela conserva até hoje o título de maior abóbada do mundo feita de argamassa e tijolos (foram utilizados 4 milhões deles). (...) A cúpula consistia, em suma, num enigma arquitetônico que despertava ceticismo generalizado. Daí o escárnio e a descrença diante das ideias lançadas por Filippo Brunelleschi (1377-1446) no concurso que definiria o comandante da obra – disputa vencida, afinal, por ele mesmo. Algo como um avô de Leonardo da Vinci ou bisavô de Michelangelo, o ourives, relojoeiro, escultor, arquiteto e engenheiro Brunelleschi foi tachado de doido ao propor uma solução que adicionava mais complexidade à tarefa: a construção não apenas de uma, mas de duas abóbadas, superpostas. No espaço entre elas, uma escadaria permitiria subir até o topo – hoje, encarar seis 463 degraus é um prazer excruciante a que nenhum turista resiste. Heresia suprema: ele afirmava ser possível erguer a cúpula sem o apoio de um gigantesco suporte de madeira, como rezava o bom senso. Sua estrutura seria capaz de se autossustentar mesmo durante o processo de construção.
(...) Brunelleschi entrou na disputa pelo projeto da cúpula depois de passar quinze anos em Roma estudando construções da Antiguidade ao lado de um amigo célebre, o escultor Donatello. Impressionado com edifícios como o Panteão romano, ele retornou a Florença disposto a resgatar a glória arquitetônica do período clássico. Essa tendência se delineava desde o século XIV, graças a artistas como o também italiano Giotto – projetista do campanário que faz par com a cúpula da catedral.
(...) O gênio de Brunelleschi residia em seu domínio da dinâmica dos materiais e da matemática. (...) Ele inventou um guindaste capaz de içar as 37.000 toneladas de material do chão ao cume da abóbada só com a tração de alguns bois. Mas a maior sacada da obra, realizada entre 1420 e 1436, foi embutir ao longo dos oito lados da cúpula nove anéis circulares horizontais – referência aos círculos que compõem o Paraíso na Divina Comédia de Dante Alighieri. Os anéis neutralizam as forças de tensão, mantendo a estrutura suspensa.
A façanha fez de Brunelleschi a primeira celebridade da arquitetura. (...)

Fonte: Marcelo Marthe, “O céu é o limite”, Veja, ed. 2.325, ano 46, número 24, 12/6/13, p. 136-7.

Uau!

Chicago é, definitivamente, uma cidade de arquitetura marcante. E contrastante. Basta uma rápida olhada pelo seu famoso e encantador “skyline” para sentir a força da atração daquele conjunto incomparável de arranha-céus. Não chegam a ser tantos como em Nova York (longe disso, aliás) – é impossível comparar o gigantismo de ambas, embora a capital do estado de Illinois seja, sim, um cidade grande.
Embora não se comparem em quantidade, os prédios de Chicago nada deixam a dever aos seus congêneres nova-iorquinos. Neste quesito, a cidade, pode-se dizer sem ofensa, é uma espécie de filial da “Big Apple”. Em ambas, vê-se com clareza o encontro aparentemente inviável e chocante entre uma arquitetura clássica e outra moderna-contemporânea. Entre fachadas bruscas e rebuscadas, entre pedras e espelhos, entre passado e futuro.
As semelhanças param aí. Há em Chicago, parece-me, um arrojo maior, uma ousadia e uma coragem de mexer com a paisagem. Algo que se vê brotar agora em Nova York com o novo World Trade Center (é verdade que o original, derrubado pelos terroristas, representava uma boa dose de ousadia, mas nada comparado aos modelos existentes na capital de Illinois – onde o que se pode classificar de futurismo é marcante em várias edificações).
Antes que me atirem pedras: sim, Nova York é cheia de construções criativas e rebeldes, como os caixotes dançantes da sede do New Museum, na Bowery, mas elas desaparecem na paisagem quando se tem aquela vista clássica de “skyline”. Em Chicago, ao contrário, a rebeldia se destaca – talvez, e muito provavelmente, em razão da quantidade menor de prédios.
O fato é que a arte das construções faz parte da alma de Chicago. Arquitetura e cidade são indissociáveis. A ponto de ser ela, a arquitetura, talvez a principal atração num lugar repleto de atrações. Irresistível – é isto! Ninguém pode, nem consegue, resistir à paisagem “chicaguense”. De onde quer que se olhe, de longe (num agradável passeio de barco pelas águas por vezes agitadas e gélidas do lago Michigan) ou de perto (como se se estivesse no “olho do furacão”, ali no Millenium Park), o cenário atrai a atenção, desperta a visão e os sentimentos.
Quais sentimentos? Aqueles mesmos que se sente diante de uma taça do melhor dos vinhos, do mais delicioso dos chocolates, do mais aromático dos perfumes. Um sentimento que se funde a uma sensação de “Uau!!”, espanto – ou que dela é gerado. Até porque, além de irresistível, a arquitetura é onipresente. Onde quer que se esteja você a verá, pequena ou grande, sempre monumental.
Escurecendo ao por-do-sol, brilhando pontilhados pelas luzes douradas de seus interiores, os prédios de Chicago dão à cidade um aspecto único. Singular – daí serem um orgulho local. Várias, muitas cidades têm um “skyline” característico. Nenhuma delas como o da capital de Illinois com seus arranha-céus pontiagudos, de clássicos tijolos vermelhos ou de vidros espelhados, quadrados, circulares, em declive, um cenário clássico numa cidade moderna. Ou então edificações modernosas numa localidade tradicional. Um arranhando e sombreando o outro, cutucando, provocando, cada qual buscando e dividindo espaço, paradoxo dos paradoxos, contraste e harmonia numa mesma paisagem com os mesmos elementos.
Uma cidade, sem dúvida, de “grandes construções”, como desenhou o designer gráfico inglês Al Boardman.

Chicago - Five Great Buildings from Al Boardman on Vimeo.

Sim, uma cidade de “grandes construções”, como eu a vi.












 

"Imagens do muro"

A bicicleta vai flanando lentamente e em segurança, sem ser ameaçada por veículos motorizados. Ali de cima a visão é perfeita, e a tranquilidade do passeio permite que uma das mãos acione sucessivamente a câmera do telefone, registrando aquele impressionante pedaço de história.
As imagens são coloridas e fortes, há simbolismo para o medo, para a opressão e para a morte, mas também para a liberdade e para a paz.
As cenas fotografadas e que podem ser vistas nesta página* compõem a East Side Galery, em Berlim, próxima ao centro da capital alemã, passeio obrigatório para quem visita essa cidade imperdível.





O trecho preservado de 1,3 km do famigerado Muro de Berlim (1961-1989) ostenta uma centena de trabalhos de artistas plásticos do mundo todo e constitui uma das favoritas, entre tantas, atrações da cidade.
Mas não é possível prever por mais quanto tempo: uma autorização preliminar para a construção de um condomínio de luxo, com 36 apartamentos e escritórios, ameaça o futuro de cerca de 30 metros da galeria a céu aberto.
Em que pesem os inúmeros protestos e movimentos que lutam contra isso, por enquanto ela está lá, firme e forte, prova cabal de que o turismo de bicicleta em Berlim é o máximo.
Ruas planas e bem calçadas, praças amplas, poucos automóveis, muitas faixas exclusivas e, sobretudo, gente educada para respeitar o ciclista. Eis o que se encontra por toda a cidade, talvez a melhor do mundo para se conhecer de bicicleta.
Não que outras cidades europeias não o sejam, mas, no caso de Berlim, o que torna esse ato comezinho fantástico, além dos dotes geográficos, é a história visível da própria cidade e a arte que se encontra em suas ruas.
E há bicicletas para todo lado em Berlim, os moradores locais as usam para tudo, apesar da excelente rede de ônibus, metrô e dos simpáticos e coloridos bondes articulados. Na porta da maioria do bons hotéis, há bikes para alugar, aos hóspedes ou a quem mais queira, por cerca de € 10 (R$ 27) a diária.
E a bicicleta é sem dúvida o melhor ponto de observação para essa cidade em perpétuo movimento, em que a história se refaz constantemente.
Seja para percorrer suas amplas avenidas ou as alamedas de seu gigantesco parque, o Tiegarten, seja para ir de um marco histórico a outro.
Do portão de Brandemburgo à Alexander Platz, do boêmio bairro Mitte à futurista Postdamer Platz ou ao Parlamento, sem nunca conseguir evitar, nem que se queira, as recordações do pesadelo nazista por conta da sucessão de marcos, como o monumento às vítimas do Holocausto.
Este é o carma dos alemães desde 1945: lembrar para não esquecer.
Por isso, não deixa de ser um paradoxo a ameaça que paira sobre o único grande trecho preservado do famoso muro, que ostenta a East Side Galery, que fica na Mühlenstrabe, próxima ao Kreuzberg, também conhecido como "bairro turco".

Fonte: Luiz Caversan, “Folha de S. Paulo”, Turismo, 20/6/13.


* O texto está tal qual no original, porém as fotos são minhas

Em tempo: não costumo publicar textos de terceiros neste blog, salvo raras exceções. Esta é uma delas: quando me deparei com o tema nesta quinta-feira (20/6) no jornal, não pude resistir à descrição perfeita do que vi e senti quando lá estive há pouco menos de um mês.

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