É inevitável
lembrar de Kafka em Praga. Não que um de seus mais famosos filhos – talvez o
mais famoso ou universal – esteja em cada canto, em cada edificação. Não está,
definitivamente. Se não o procurar, se não souber onde, você não o encontrará.
Mas Kafka está lá, em todos os lugares. Ele está no clima de Praga, na brisa
fria que bate suavemente na face, gelando-a ainda que sob o sol da primavera,
um sol tímido após uma chuva leve; está nas vielas e becos úmidos e sombrios
que ligam cá e acolá.
Em qualquer lugar
está Kafka, o filho ilustre. Ele persegue tal qual um espírito errante, ainda
que você não o conheça, nunca dele tenha ouvido falar. Ele domina, reina,
faz-se presente por sua ausência, espalha-se assim pelos cantos, pelo ar que se
sente e se respira. Kafka está para Praga como Praga esteve para ele, Kafka. Em
seus passos diários pela Na Porici, a rua cujo nome é impossível acentuar nos
teclados brasilianos, trajeto rumo ao local de ofício no Instituto de Seguros
contra Acidentes de Trabalho, vez ou outra parando na Torre de Pólvora que
separa a cidade nova da cidade velha para esperar um amigo, observar o
movimento na praça da República (a Namesti Republiky – taí outra palavra
impossível de acentuar, namesti) de um lado ou, quiçá, na rua que leva à
Staromestske Namesti, outra praça importante, coração da cidade velha.
Na Porici ou
namesti, seja onde for, lá estava Kafka, lá está Kafka. Dia e noite vagando
pelas ruas de Praga, respirando o ar mágico daquelas ruas encantadas,
inspirando-se para o ofício principal ao qual reservava as noites, a escrita. E
para a qual procurava o silêncio, que encontrou na casinha número 22 da Viela
Dourada, ou Golden Lane, ou ainda Goldmachergässchen, assim mesmo, tudo junto,
era nesta língua quase indecifrável que Kafka escrevia. Foi por meio dela que
se tornou célebre.
“Certa vez
fui procurar apartamento com Ottla, no verão. Eu não acreditava mais na
possibilidade de encontrar silêncio de verdade, mas mesmo assim fui procurar.
(...) Só por brincadeira resolvemos perguntar na pequena viela. Sim, uma casa
estaria livre para ser alugada em novembro. (...) A casa tinha muitas
deficiências no início, não disponho de tempo suficiente para contar o
desenvolvimento. Hoje ela me agrada bastante. Resumindo: o belo caminho até lá,
o silêncio ali, uma parede fina apenas a me separar do vizinho, mas o vizinho é
bastante silencioso.”
Vizinhos na Alchymistengässchen
(este era o outro nome possível naquela língua quase indecifrável para a Viela
Dourada, ou Golden Lane), a rua dos ourives, alquimistas, ferreiros,
farmacêuticos, ferramenteiros, a rua dos trabalhadores no longínquo castelo de
Praga, no alto do morro, para onde Kafka subia em busca de tranquilidade. A rua
das casinhas pequeninas, de portas pequeninas, de cômodos diminutos, quase de
brinquedo, um apêndice pobre numa área nobre, rua de casas modestas a Viela Dourada,
nome imponente, ou Goldmachergässchen ou Alchymistengässchen, nomes indecifráveis
(ou quase – “gold”, ouro por tradução do inglês; “alchymisten”, alquimista por semelhança
com o português).
Percebe-se,
Kafka persegue quem não o procura porque está espalhado pelo ar de Praga, esconde-se
de quem o busca porque é preciso saber ao certo onde encontrá-lo. Não há placas
“Kafka ali”, “Kafka acolá”, “Aqui Kafka”, mas pare, olhe, respire – sente a
presença? Onipresente no clima, talvez ele esteja também nas palavras da língua
quase indecifrável. Certamente está. Foi concatenando habilmente as palavras que
ele impregnou o ar da cidade. Quase uma metamorfose de um e outro, escritor e
lugar.
Quem procura
Praga encontra Kafka. Quem procura Kafka encontra Praga. Acredite: ele persegue
tal como o antigo calhambeque vermelho, também onipresente, a cada esquina
deixada para trás, em cada café que se olhe, em cada rua por onde se passe, ele
estava sempre lá, o antigo calhambeque vermelho, charmoso, imperial, fora do
tempo e perfeitamente encaixado no espaço. Tal como Kafka em Praga hoje,
sujeito e objeto formando um só corpo, um só espírito. A cidade, o escritor, o
calhambeque.
PS: citei que
algumas palavras são impossíveis de acentuar no teclado em língua portuguesa
porque o tcheco possui um acento como o circunflexo, só que virado ao
contrário. É possível acentuar usando os símbolos do Word (ĕ, por exemplo), mas
preferi abrir mão deste recurso para forçar um certo romantismo no texto.
* O trecho entre aspas é parte de uma carta escrita por Kafka para Felice Bauer - entre o final de 1916 e início de 1917 - e foi retirado do livro de Harald Salfellner, “Franz Kafka & Praga”.