Na terra de Luther King

Mais do que conhecer lugares e, eventualmente, pessoas, viajar é viver experiências. Algumas delas (quase todas, boas e ruins) inesquecíveis. Tendo isto em mente, qualquer viagem – ainda que não seja necessariamente uma aventura – se transforma num tesouro. É uma fonte de riqueza inigualável. Fiz esta introdução teórica (no jornalismo diria-se que se trata de um “nariz de cera”, um eufemismo para enrolação) para narrar uma dessas experiências que marcam a vida de um viajante. Foi em Atlanta (EUA), esta cidade que me persegue, que entrou no roteiro da minha vida por força do destino, como já narrei neste blog, e com a qual me deparo ocasionalmente em citações por aí.
Foi assim, numa citação ocasional, que lembrei da tal experiência. O estopim foi a comemoração dos 50 anos do discurso do líder negro Martin Luther King na famosa Marcha sobre Washington por Trabalho e Liberdade – ocasião em que ele pronunciou a célebre frase “I have a dream...” (“Eu tenho um sonho...”). Embora a história se passe na capital dos EUA, foi a capital do estado da Geórgia que mereceu destaque num caderno de turismo de um jornal. Isto porque ela é a terra natal de Luther King, daí a grande quantidade por lá de referências ao famoso líder.
Estive em Atlanta duas vezes. Em ambas, li diversos folhetos oferecendo tours pelos locais que guardam ligação com Luther King e com a sangrenta Guerra Civil norte-americana (1861-65), que dividiu o país entre norte e sul e causou a morte de quase um milhão de pessoas (sendo 618 mil soldados). Apesar da diferença de um século, um fato está intimamente ligado ao outro, a guerra à ascensão de Luther King e à luta que ele encampou.
Como se sabe, a escravidão foi um dos principais (se não o principal) estopim da Guerra de Secessão. O norte com trabalho livre contra o sul escravagista. E Atlanta era - e ainda é - uma das principais cidades sulistas. A região preserva até hoje alguns dos principais campos de batalha da guerra. Foi lá também que nasceu em 1936 o romance “E o vento levou...” (“Gone with the Wind” no original) – que tem o conflito como pano de fundo. A casa da escritora Margaret Mitchell, autora da saga de Scarlett O´Hara, está lá para ser visitada.
Há uma série de outras atrações ligadas à guerra e a Luther King. Eu não conheci nenhuma delas. Embora apaixonado por história, não encontrei disposição para percorrer os campos e correr atrás dos lugares que ajudam a contar aqueles episódios. É quase um pecado, eu sei, mas foi a minha escolha. Visitei a CNN, o Georgia Aquarium, o High Museum, o Museu da Coca-Cola, o Jardim Botânico e até a jogos do Braves (baseball) e do Hawks (NBA) eu fui, mas “pulei” a parte histórica da cidade.
Nem por isso, deixei de vivenciar experiências que carregam marcas profundas de toda essa história. Ao me deparar com a comemoração pelos 50 anos do famoso discurso e as obrigatórias menções a Atlanta na biografia de Luther King, lembrei do dia em que me senti "diferente" – e compreendi um pouco o que isto significa.
Só depois que voltei de Atlanta pela primeira vez soube que a cidade é conhecida pela sua população negra. Portanto, para mim este fato foi uma surpresa. Por mais que eu soubesse onde estava pisando (ou seja, numa cidade-chave do sul dos EUA), não havia me atentado à herança escravagista. Até porque, quando lá cheguei, deparei-me com uma cidade desenvolvida, com praças e parques bem conservados, arranha-céus modernos e uma infraestrutura de causar inveja. Sem dúvida, uma das localidades mais bonitas do país.
Atlanta, porém, só ganhou vida mesmo quando fui ao Underground. Trata-se de uma espécie de shopping, ou mercado, localizado no subterrâneo (daí o nome), ligado à principal estação de metrô, a Five Points. O lugar é recheado de lojinhas populares e carrinhos de ambulantes. Mais que isto, é recheado de negros. Praticamente só negros frequentam o espaço. Fui percebendo isto ao longo da minha caminhada por lá. 



A situação ficou evidenciada quando parei na praça de alimentação para almoçar. Já era meio da tarde, eu iria ao jogo dos Braves logo mais e atrasei a refeição propositadamente. Quando peguei meu lanche e sentei à mesa, reparei que eu era o único branco ali. Embora já tivesse passado a hora do almoço, o espaço estava cheio de gente. Os norte-americanos costumam se alimentar durante todo o dia – esta é a impressão tamanha a quantidade de pessoas a todo momento ocupando as mesas de um “fast-food” qualquer. Eles adoram isto!
De repente, uma sensação estranha começou a me atormentar, algo como se eu não fizesse parte daquilo, ou não devesse estar ali. Como se ali não fosse o meu espaço, como se eu fosse um invasor. Não notei especificamente nenhum olhar estranho, seria injusto e incorreto insinuar qualquer coisa neste sentido, mas o fato é que eu me senti excluído. Pela primeira vez senti o peso da cor da pele – às avessas (porque historicamente o que se dá na sociedade ocidental é o contrário, os negros é que pagam o preço da exclusão racial).
Foi seguramente uma experiência estranha e singular. Não me senti incomodado propriamente, tampouco me senti totalmente à vontade. Mais do que o peso do racismo que os negros historicamente sofrem, por um instante me senti com o rótulo de “diferente” – e os sentimentos que isto desperta. Numa sociedade ainda profundamente dividida cinco décadas após o famoso discurso de Luther King é uma sensação significativa. Por vezes amarga, algo atenuado pelo simples fato de eu ser estrangeiro e aquela não ser minha realidade permanente.
Durou poucos minutos, mas valeu como experiência de vida. Mais uma lição que Atlanta me ensinou.

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