Essa gente colorida

“Acho que você pode planejar qualquer viagem para visitar lugares especiais, mas uma grande jornada é definida pelas pessoas que você conhece.” 
Andy Smith, turista inglês que visitou o Brasil durante a Copa do Mundo

Poucas vezes fui a um lugar tão interessado em conhecer as pessoas, e não necessariamente as atrações, paisagens, cidades, etc. Não que o fator humano não seja fundamental em qualquer lugar do mundo – londrinos, parisienses, nova-iorquinos, brasilienses, todos têm lá suas peculiaridades. Eram, porém, os peruanos que me despertavam uma curiosidade além do comum.
As imagens simbólicas (pré-concebidas, é verdade) de pessoas pequeninas, rostos com traços pré-colombianos e roupas coloridas não saíam da minha mente. Logo elas ganharam um apelido: “tiazinhas”. Na capital Lima, cidade com ar metropolitano, a figura peruana estereotipada era rara. Em Cusco, a antiga – e eterna – capital do império inca, coração do Vale Sagrado, elas (e eles) estavam lá, aos montes. 
Com suas roupas tecidas artesanalmente com lã de alpaca, trajes simples, mas extremamente representativos de uma cultura secular; carregando trouxas nas costas, ora com mercadorias para a casa, ora com os próprios filhos; levando vez ou outra pequenas lhamas; costumeiramente encurvados e eventualmente estampando um magnífico sorriso, os cusquenhos fazem questão de manter tradições – e a vestimenta é uma das mais antigas e simbólicas.
Quando a primeira figura cruzou meu caminho, senti uma emoção diferente. Como se estivesse concretizando um encontro marcado há séculos, um reencontro na verdade. Não com uma pessoa em especial, e sim com uma cultura, que aquelas figuras representam tão bem – e magicamente.
Logo, os cusquenhos se tornaram comuns, espalhados que estão pelos quatro cantos da cidade e do próprio Vale Sagrado dos incas. Homens de estatura mediana, crianças indo à escola e voltando, mulheres preparando as refeições em humildes e típicos fornos de barro, à lenha, ou vendendo bugigangas para turistas ávidos, exibindo dentes mal conservados e ocasionalmente brilhantes. 
Figuras anônimas, capazes de carregar no mais profundo da alma segredos que a própria razão desconhece. Vivem em lugares aparentemente pobres, mas que guardam uma riqueza indescritível. As culturas pré-colombianas, das quais a inca foi a última e mais relevante, tinham nas relações com a natureza o seu âmago. Uma relação marcada pela integração e respeito, bem diferente do que se vê hoje. Eram também culturas com profundos conhecimentos de astronomia, agricultura e engenharia. Basta ver as enigmáticas edificações que construíram e legaram à humanidade (Machu Picchu a mais importante delas), os ensinamentos que resultaram numa capacidade ímpar de produzir alimentos em locais de difícil acesso e topografia prejudicada, como as encostas das altas montanhas da cordilheira dos Andes. O sítio arqueológico de Moray, por exemplo, servia como local de experimentos agrícolas – conhecimento que se adquiria de modo empírico.
Hoje, cada um destes ensinamentos parece estar estampado nos rostos humildes e singelos dos cusquenhos. Bem como uma alegria, muitas vezes contida, que se esconde por trás de um sorriso assim meio maroto, meio tímido. Um sinal de que aquelas figuras, em meio a vacas, milho e em suas casas de barro, aquela gente descendente de uma rica herança cultural e histórica, é simplesmente feliz. A seu modo, feliz.


***

Esta postagem é também uma homenagem a todos que cruzaram o meu caminho nas viagens profissionais dos últimos meses. Como o irreverente e simpático Alexander Biggs, motorista-guia panamenho, com gosto – e certo jeito/sotaque – jamaicano e seu indefectível “Pá what??!!”.

Machu Picchu, a cidade "perdida" dos incas

Nossa jornada rumo a Machu Picchu vai se aproximando do destino. A cidade criada pelos incas no topo de uma montanha ficou praticamente escondida até o começo do século 20, quando foi desbravada por uma expedição que enfrentou e venceu os desafios da cordilheira e da floresta. Hoje, milhares de pessoas todos os dias refazem esse caminho.
A primeira etapa da viagem a Machu Picchu é de carro por uma estrada no meio do Vale Sagrado. Vilarejos rurais vão ficando para trás.



Depois de pegar uma rodovia e uma estrada de pedras, chegamos até a estação de Ollantaytambo, onde pegamos um trem que nos vai levar até parte do caminho rumo a Machu Picchu, a cidade perdida dos incas.



O trajeto de 43 quilômetros dura uma hora e meia. A paisagem às margens do rio Urubamba é fascinante. Aqui, o antigo rio Vilcanota ganha um novo nome, fica com as águas mais claras e caudalosas. Em alguns pontos chega a ter uma forte correnteza. O trem, com janelas panorâmicas, nos faz sentir como se tivéssemos caminhando entre as montanhas, pelas antigas trilhas incas.
Para os aventureiros, há dois caminhos a pé até Machu Picchu. Um leva quatro dias de caminhada e o outro dois, com paradas para descansar.
No trajeto, passamos por vestígios da antiga civilização. Sinal de que estamos mais perto. O trilho vai ficando para trás na medida em que avançamos até o destino final do trem, no último povoado antes de Machu Picchu. Águas Calientes leva o nome deste rio que corta o vilarejo até se encontrar com o grande Urubamba.







Aí pegamos um ônibus para o último trecho da viagem. Subimos por uma estradinha de terra cheia de curvas.


Depois de pouco mais de 20 minutos subindo a montanha de ônibus nós chegamos até a entrada da cidade sagrada dos incas. O acesso é restrito: somente 2,5 mil pessoas por dia podem entrar em Machu Picchu, segundo determinação do governo peruano.
E logo surge a cidade. Imponente. Única. Um desafio à engenharia e ao tempo. A cidade que resistiu à invasão espanhola ficou escondida durante séculos até ser desbravada numa expedição no início do século 20 exibe vitalidade. Embora esteja no topo de uma montanha, Machu Picchu fica cerca de mil metros abaixo de Cusco. Respirar nessa área, com o organismo mais adaptado, já não exige esforços. Caminhar pelas antigas ruas da cidade é uma missão tranquila. A única subida mais acentuada é a que leva ao topo da zona agrícola. E é para lá que vamos primeiro.





Esta parte da cidade é formada basicamente por terraços onde os incas plantavam e recintos para armazenar os alimentos. As lhamas, aliás, continuam se alimentando por aqui, ignorando a presença dos turistas. E às vezes se exibindo para eles.
O império inca não tinha uma moeda, todas as negociações eram à base de troca, inclusive os alimentos.





Vamos agora para a parte urbana. Ela é formada por casas, templos e praças. São 172 edifícios. O que divide as duas áreas é este portão. As ruas são estreitas. E as lhamas pedem espaço.





Ao olhar as casas, é possível distinguir as que são de pessoas mais nobres das mais simples pelas pedras. As de pedras rústicas, colocadas um tanto aleatoriamente, com uma espécie de argamassa, são do povo. Nas casas mais chiques, nos templos, as pedras são uniformes, encaixadas umas sobre as outras.
Algumas casas são muito simples, mas algumas têm dois andares. É possível perceber isto por causa das saliências, que é onde se colocava um segundo pavimento. E também dá para ver que o telhado é bem alto. Em geral, as casas têm um único cômodo porque para os incas ela funcionava apenas como dormitório.








Conhecer a cultura inca é aprender uma lição de respeito à natureza. Machu Picchu é um exemplo. A cidade foi feita integrada à montanha, em harmonia com os elementos naturais que a cercam. Vários locais foram construídos de modo que a luz do sol passasse especialmente nos dias de solstício, que marcam a mudança das estações do ano. Janelas foram posicionadas com a mesma finalidade. A adoração ao sol era um dos elementos mais importantes da cultura inca.



No ponto mais alto da cidade fica um templo com um relógio de sol. Os incas não marcavam as horas, mas sabiam com exatidão a passagem dos meses e a chegada das estações, um conhecimento essencial para a agricultura.



A cultura inca também usava a natureza para suas representações sagradas. A pedra foi esculpida como uma cópia da paisagem ao redor. Segundo nossa guia, as montanhas de Machu Picchu e Waina Picchu representam a dualidade entre esquerda e direita, abaixo e acima. As três montanhas representam o mundo onde moramos, o mundo dos mortos e o mundo dos deuses. “A energia vital flui nos três mundos. E não existe uma morte como uma separação definitiva. É a passagem de uma forma de vida a outra. E esta outra forma de vida a pessoa segue contribuindo para o desenvolvimento da mesma vida”, explica Carmen Canales.


O império inca foi um dos maiores e mais importantes da América do Sul. Durou cerca de 300 anos, até a chegada dos colonizadores espanhóis no início do século 16. Chegou a ocupar um território de 1,7 milhão de quilômetros quadrados, área hoje pertencente a seis países – Equador, Colômbia, Argentina, Chile e Bolívia, além do Peru.
Era dividido em quatro grandes regiões e tinha nos agrupamentos de dez famílias a sua base social.
Machu Picchu é o sítio arqueológico mais preservado e espetacular. Provavelmente ficou assim pelo desinteresse dos espanhóis num lugar de acesso tão difícil e sem riquezas aparentes. Embora apareça em citações do século 19, a chamada cidade perdida só foi desbravada mesmo em 24 de julho de 1911 pelo norte-americano Hiram Bingham. Na época, o lugar estava tomado pela vegetação.
Hoje, Machu Picchu é patrimônio da humanidade. E fascina os visitantes. “É indescritível. Só estando para sentir, muita história, muita coisa embutida que você sente, mas depende do grau de cultura de cada um saber interpretar os fatos”, diz o aposentado Sérgio Salles. “Falam tanto em ecologia, há quanto tempo já se fazia aqui, os drenos, a preocupação com o solo, o Vale Sagrado onde não se construía para preservar a cultura do milho que para eles era fundamental... É uma escola da vida que a gente não sabia já existia há muito tempo”, completa.









Chegar até Machu Picchu não é fácil. Ela fica a 2.650 metros de altitude. Por isso é mais impressionante imaginar como os incas construíram uma cidade no topo da cordilheira dos Andes. Há várias teorias para explicar a existência de Machu Picchu: para alguns estudiosos ela era apenas mais uma cidade inca. Isto porque é dividida em áreas agrícolas, áreas urbanas, tem todos os elementos de uma cidade. Mas para alguns estudiosos era um lugar sagrado para onde os incas vinham para estar em contato mais próximo com os deuses.
“É mais do que qualquer pessoa poderia imaginar. Estar aqui realmente é uma sensação incrível que nenhum livro, nenhuma foto é capaz de descrever, é capaz de você ter mesmo esta noção”, fala a jornalista Karla Santos. “A estrutura, a perfeição com a qual eles trabalhavam as pedras... Realmente o conhecimento que eles tinham e o respeito pelos poderes da natureza, em especial os terremotos que acontecem aqui, a estrutura que fazem respeitando toda a natureza realmente é muito incrível”, completa.
O império inca durou até 1532, mas sua história e principalmente suas lições permanecem até hoje. E a principal lição, olhando para Machu Picchu, talvez seja a capacidade do homem de construir coisas belas respeitando o ambiente. Uma combinação sustentável e poderosa. Porque, como disse um de nossos guias, as cidades são bonitas, mas as montanhas são mágicas.


* Texto originalmente feito para o programa "Matéria de Capa" (TV Cultura, dom., 19h30)

Um vale sagrado e mágico

Um lugar mágico. É assim que muitos peruanos costumam se referir ao Vale Sagrado, o coração agrícola dos povos andinos. Uma região cercada pela beleza da cordilheira dos Andes. Lá, nos pequenos povoados, tradições seculares são mantidas como em nenhum outro lugar do país.
A primeira visão é arrebatadora. Uma planície cortada pelas águas amarronzadas do rio Vilcanota, cercada de montanhas verdejantes. Lá embaixo, plantações de milho e uma dança tipica numa escola do vilarejo. É o nosso cartão de visita do Vale Sagrado.

Fonte de vida do vale, o Vilcanota era chamado de Willkañuta, "casa do sol" na língua quechua, ou Willcamayu, "rio sagrado". Ele corre em direção ao Brasil, onde ganha o nome de Solimões e vai dar origem ao rio Amazonas até desaguar no oceano Atlântico perto da ilha de Marajó. O rio é fundamental para o vale. As condições climáticas fazem deste lugar um dos mais férteis do continente. Uma fonte de riqueza para os povos do passado e do presente. Dali sai um dos milhos de melhor qualidade do mundo, exportado para os Estados Unidos e Japão.
E a riqueza não brota só da terra, vem também da montanha. Há mais ou menos 20 milhões de anos toda a região ficava debaixo d´água, dentro do oceano. Quando a cordilheira se levantou, formaram-se bancos de sal como as salinas de Maras, que fica bem no coração do império inca.
Para descer até lá, é preciso enfrentar uma estrada de terra e cascalho à beira do penhasco. São cinco mil bancos de sal, explorados por duzentas famílias. A produção dura de abril a outubro e é medida em quintais. Um quintal equivale a 50 quilos. Cada poço rende por mês cerca de 80 sóis, a moeda do Peru.
A água desce da montanha já salgada por causa do clorato de sódio e quando cai nas poças ela vai se cristalizando, formando os cristais de sal. E acredite: a água desce muito salgada e quente! Dá para provar. É muito parecido com uma salmora como se conhece no Brasil, bem salgada!




      
Na planície cercada pelos picos nevados dos Andes, o silêncio só é quebrado pela passagem de algum veículo. O Vale Sagrado fica a 2,9 mil metros de altitude. Lá, a vida é rural. A estrada une os pequenos povoados, lugares simples, com casas de pedra, sem sinais de riqueza. Ao menos do ponto de vista financeiro. Porque a região é rica em cultura e beleza. Guarda tradições, conhecimentos e mistérios dos povos que passaram por lá séculos atrás.









O Peru atual é fruto de 24 civilizações que viveram na região por cinco mil anos. A história de cada uma está contada no museu Larco, em Lima. Só em cerâmica são 54 mil peças, uma das maiores coleções do mundo. Elas revelam um pouco do cotidiano dos antigos povos, que não deixaram escritos. No museu também estão peças usadas nas refeições, além de joias e adornos em ouro e prata. O brilho dourado não servia para ostentar riqueza. Era símbolo de conhecimento. Num objeto foi descoberta a múmia de um menino. Os antigos povos acreditavam na vida após a morte, por isso a representação de um homem adulto.






De volta ao Vale Sagrado, o museu Inkariy aposta num trabalho artístico para apresentar as mais conhecidas e influentes civilizações que formaram o Peru, como os mochas e paracas. Em cada sala, a encenação de um aspecto do cotidiano destes povos. “Este museu está mostrando através de um recorte cronológico oito das culturas mais importantes para o desenvolvimento do homem andino em geral. Por quê? Para entender porque o império inca foi tão importante e tão poderoso e pôde expandir para praticamente todo o continente. O desenvolvimento da religião, engenharia, organização sócio-político, astronomia, todos estes conhecimentos se juntam no império inca e se converte num grande império”, explica Edilberto Mérida, artista plástico e museógrafo.







Na busca pelas marcas deste império, chegamos a Moray. Os degraus circulares eram usados para experimentos agrícolas pelos incas.



Também passamos por Tambomachay, que serviu de posto de observação de um lado e área de descanso do outro devido à existência de fontes de água. Por isso, o local também funcionava com um templo, já que para os incas tudo que vinha da natureza era sagrado.





Dali seguimos para PukaPukara, outro posto de guarda e observação próximo, de onde se vê todo o vale e suas belezas. De um ponto de observação era possível ver o outro, o que garantia uma comunicação visual e a segurança da área.





Também visitamos Q'enqo, o templo da mãe terra. A grande pedra cercada por um pequeno muro possivelmente tinha algum significado especial. É possível que tivesse algum formato - os espanhóis destruíram vários símbolos de adoração dos incas. Do lado de trás há um caminho em zigue-zague entre as pedras. Em alguns pontos ele é tão estreito que passa só uma pessoa. O templo esconde também uma gruta com uma espécie de altar. O lugar era provavelmente usado em rituais.






Nosso trajeto termina em Saqsaywaman, um reservatório de água na época dos incas hoje tido como um lugar místico. Muitos acreditam que o lugar emana energia cósmica. O escorregador natural ao lado virou atração para os turistas.

E a poucos metros, no mesmo completo, uma grande muralha de pedras formando uma ampla praça. Dali dá para ver a cidade apenas dois quilômetros abaixo. Por isso, alguns estudiosos afirmam que a área serviu como uma fortaleza, mas a teoria mais aceita é que se tratava de um grande templo de adoração ao sol. Vinte mil homens trabalharam em sua construção, que durou cerca de 50 anos, entre os séculos 15 e 16.







 
* Texto originalmente feito para o programa "Matéria de Capa" (TV Cultura, dom., 19h30)

Postagem em destaque

A Veneza verde do Norte

A tecnologia que empresas suecas levam mundo afora hoje em dia não é um acaso. O país tem vocação para invenções e descobertas. O passado v...

mais visitadas