Flanando pelo mundo

Poucas palavras combinam tanto com a arte de viajar como flanar: "passear ociosamente; vadiar", segundo o dicionário Michaellis de Língua Portuguesa. Curioso um dos verbos... Com o passar dos anos, vadiar adquiriu um sentido muito mais pejorativo do que aquele que registra o dicionário - "andar ociosamente de uma parte para outra; andar à tuna; levar vida ociosa, de vadio; brincar, divertir-se". Curiosos alguns dos verbos... Porque, no fim das contas, o propósito mesmo de flanar é brincar, divertir-se.
Andar a esmo, ou de modo errante, é uma das tarefas que mais aprecio quando viajo. Observar a paisagem sem pressão do relógio, ver o céu mudar e o tempo passar, olhar as pessoas que vêm e vão em seus afazeres diários, reparar nos detalhes nas vitrinas, na cor daqueles doces, na exuberância daqueles pães, nos iates que passam à margem do calçadão, nos pássaros que cantam, nas luzes que piscam, nos carros que buzinam...
Flanar é um prazer em si, mas se a ele se juntar alguma descoberta (inesperada), o cardápio fica completo, o prazer aumenta e a brincadeira ganha um novo sentido. Trombar com algo interessante é tarefa praticamente inevitável. Qualquer que seja o lugar do mundo onde se esteja flanando, haverá de ter algo desconhecido que chamará a atenção da alma de um viajante curioso - nem que seja um grafite num muro ou uma simples flor. 
Foi assim, flanando (e fugindo de uma chuva intermitente), que encontrei um abrigo repleto de arte. Descia o Boulevard Robert-Bourassa, em Montreal, no Canadá, quando ouvi uma música vindo do interior da catedral Christ Church, que fica no cruzamento com a rua Sainte-Catherine. Decidi conferir. Logo na entrada, uma placa indicava que ali haveria uma espécie de concerto. 
Na programação, “Andy e Amigos”, com Krisjana Thorsteinson no oboé, Katie Schoepflin no clarinete, Kathryn Schulmeister no baixo, a soprano Sarah Albu e, claro, Andy Costello no piano. O programa incluiu obras de Ludwig van Beethoven (como a Sinfonia pastoral número 6 em fá maior), de Johann Sebastian Bach. Dimitri Schostakovitch e do próprio Costello.
Música clássica de qualidade, executada com paixão, dentro de uma igreja, para um público pequeno e seleto - um alento acalentador naquela tarde fria e chuvosa de 21 de abril.







A música clássica também cruzou meu caminho em Lucerna, na Suíça, durante o famoso festival que ocorre anualmente por lá. Assisti na fantástica, moderna e colorida KKL Luzern Concert Hall ao pianista suíço Oliver Schnyder (um “poeta do piano”) e quatro solistas da orquestra do festival executando peças de Robert Schumann, Gabriel Fauré e Johannes Brahms durante um concerto de música de câmara – “considerada durante a era romântica como o espelho da alma”, segundo o livreto do festival.
Na ocasião, em 2014, a edição de verão do famoso evento teve como tema a “mágica eficácia da música”, com o slogan “Psiquê”. “Isto envolve um cosmos de emoções, os mecanismos do subconsciente que governam nosso comportamento e despertam nossas paixões e desejos, amor e ódio, felicidade e tristeza. Nada pode expressar melhor nosso profundo interior do que a música: ela nos faz rir e chorar, mexe conosco, estimula e inspira”, citava o folheto. Que assim seja, pois!



Da mesma forma, flanando em Brunnen, uma cidadezinha idílica nas margens do lago Lucerna, descobri uma destilaria quase secreta. A Dettling funciona há cinco gerações na casa que era de Arnold Dettling. Lá, as cerejas (que ficam mais românticas quando chamadas de “cherries”) genuinamente suíças são processadas e transformadas num kirsch forte e de sabor único e nobre.
Há, claro, outras variantes da bebida, inclusive um licor de cacau, naturalmente adocicado, de sabor, cor e aroma mais fortes que a famosa Amarula, um toque delicioso e diferenciado para um café da tarde ou uma sobremesa.
A destilaria foi fundada em 1867 por Franz-Xavier Dettling. Mais do que um negócio, seus descendentes tratam as cerejas como uma paixão. “Por 140 anos, damos a elas nossa especial atenção”, dizem. Segundo a família, a produção do kirsch - único no mundo feito com cerejas – “harmoniza as frutas, a fermentação e a destilação”.
Para quem faz um passeio de barco pelo lago lucerna, a parada em Brunnen pode valer a pena. Além do lugar encantador, uma rápida caminhada a partir do porto (ou, se chegar de trem, a partir da estação) leva até a casa do sr. Arnold. Preste atenção porque a fachada não lembra uma destilaria. Lá dentro, porém, como nos parques da Disney, uma magia se revela. 
Num tour de 45 minutos, o visitante conhece a história da bebida e seu método de produção. Passar pelo cenário com as cerejeiras é inspirador, bem como entrar nas escuras profundezas dos corredores que guardam o tesouro da família – o kirsch. No final, claro, uma degustação (para a qual você deve ter bom preparo etílico) e uma modesta e simpática lojinha.








E o que falar então de uma coleção de carros antigos? Ela apareceu numa rua quase - ou aparentemente - deserta de Fort Lauderdale, badalado destino turístico da Flórida. Um galpão quase sem identificação, com apenas uma plaquinha na porta, que se encontrava fechada. Nenhum sinal que pudesse indicar a existência de um outro tesouro como o que descobrimos ali. 
Quase desistindo do lugar diante da ausência de movimento ao redor, desci novamente do carro e caminhei até a porta. Foi só assim, bem perto, que vi o recado para tocar a campainha ao lado e aguardar o atendimento. A campainha, uma corda que fazia soar um pequeno sino instalado logo acima, era um adequado aperitivo para o que o espaço reservava: a maior coleção de Packard dos Estados Unidos.
O Ft. Lauderdale Antique Car Museum reproduz um showroom da marca dos anos 1920. São 32 modelos em excelente estado de conservação - todos em condiçoes de uso, além de milhares de peças de "memorabilia", como velhos relógios dos paineis, carburadores raros, freios - muitas das peças feitas majestosamente à mão. 
O museu é fruto da coleção do casal Arthur e Shirley Stone, iniciada em meados dos anos 1940. Naquela época, segundo o folheto do museu, os Packard eram "os Rolls Royce da América" - os mais refinados carros já feitos. O sr. Stone dirigiu cada um deles.
Há um modelo com compartimento para os clubes de golfe, outro feito especialmente para um médico (com espaço para levar os rudimentares instrumentos da época) e um modelo de 1929, o 645 Dual Cowl Phaeton, que lubrifica seu próprio chassis conforme é usado. "É a grande história de amor da América! Americanos têm um incrível affair com seus carros. O museu é um lugar para todos revisitarem esta paixão", disse o sr. Stone, conforme reproduz o folheto. 
E é exatamente isto que se vê no local: mais do que uma coleção de carros antigos (o que já valeria a visita), a paixão de um homem - que idolatrava Franklin Roosevelt - por uma marca e seus veículos. A paixão que, depreende-se, fora quase obsessiva. Uma paixão tipicamente americana, pois que agora compartilhada com o mundo, pois foi o próprio colecionador que idealizou a fundação que mantém o museu.
Achar o Ft. Lauderdale Antique Car Museum não é tarefa das mais fáceis (claro que um GPS facilmente o levará ao lugar, refiro-me à necessidade de descobrir a existência do local - o que esta postagem pretende resolver). Estando por lá, não hesite. A visita será uma verdadeira viagem ao passado (quem sabe até esta jornada o leve para a infância, quando flanar, ou melhor, brincar era dos verbos mais conjugados...).



 









* Em tempo: Ft. Lauderdale Antique Car Museum fica na 1527 SW 1st Ave. e abre de segunda a sexta, das 10 às 16h. Não estranhe a porta fechada. Toque a campainha - ou melhor, o sino! Uma simpática senhora abrirá as portas do mundo desconhecido dos Packard.

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